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Abrapso

ANAIS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO - RESUMO
ISSN 1981-4321

Tema: Mesa Redonda - Ética, Violências e Direitos Humanos

IDEOLOGIA, SUBVERSÃO E INCONSCIENTE: QUESTÕES NA IMIGRAÇÃO E NO MST.

Financiador:
Miriam Debieux Rosa ( )
Autores:
Os trabalhos desta mesa abordam a tensão entre os processos sociais e psíquicos, tematizados através da dialética presente na articulação entre os conceitos ideologia, subversão e inconsciente. A tensão estará presente nas discussões teóricas e metodológicas e no diálogo necessário ao abordar fenômenos como a imigração e a militância nos movimentos sociais. Paulo Silveira abre a mesa abordando o vínculo inextricável entre a ideologia e o inconsciente. Localiza o debate no campo epistemológico dialogando com Baudrillard e Althusser e centra na psicanálise lacaniana para demonstrar o caráter ideológico do Édipo e a seus "herdeiros", o ideal do eu e o supereu, ou seja, a constituição social do eu. Desta forma, fica instituída uma divisão em que o sujeito do desejo só pode aparecer fora do revestimento ideológico do eu, especificidade esclarecida pelo estatuto atribuído por Lacan à ética. Esta implica o abandono das relações do sujeito com os "serviços dos bens", isto é, o abandono de posições marcadas pela defesa de interesses, econômicos ou de qualquer outra natureza, previamente definidos socialmente. Enfim, trata-se de uma posição que é quase o oposto do que a sociologia chama de processo de socialização. Este sim, tem uma função que se aproxima, pelos efeitos que produz, daquela que corresponde à ideologia (os aparelhos ideológicos de Estado) em Althusser: a constituição dos "sujeitos ideológicos". Miriam Debieux Rosa, pela via das questões do imigrante, toca nas questões do sujeito na contemporaneidade, confrontado com os processos de globalização e a supressão angustiante das identidades e referências organizadoras. Articula o fenômeno migratório com o deslocamento, uma das leis do inconsciente freudiano e com a metonímia, modo de caracterização do desejo; articula o apelo à territoriedade e a busca de identidade à metáfora, à constituição de um lugar onde o sujeito se localiza, faz laço social e se pronuncia. Ambos processos são concomitantes e compõem a historicização do sujeito, enquanto escrevem seu percurso sócio-político, sua história social. O trabalho examina os efeitos no sujeito das condições precárias de migrações. Eliane Domingues aborda a dimensão subjetiva inconsciente presente na luta pela terra e a adesão dos sujeitos ao MST. A partir da idéia de Freud de que, o que mantém os indivíduos unidos em um grupo é a existência de um duplo vínculo libidinal - um vínculo vertical (ideal) e um vínculo horizontal (identificação) -, propõe quais foram os ideais que levaram a adesão ao movimento: os ideais revolucionários e a terra como ideal, sendo que este último foi identificado como sendo o ideal comum que possibilitou o estabelecimento do vínculo vertical, suporte para a identificação dos sujeitos. Juntamente aos ideais, destaca-se a importância do reconhecimento do sujeito da sua insuficiência e da necessidade do outro como ponto de partida para o estabelecimento de uma aliança fraterna que possibilitou a organização de ações coletivas.
 
 

Resumo das Falas

MIRIAM DEBIEUX ROSA(USP (PSICOLOGIA CLÍNICA) ; PUC-SP (PSICOLOGIA SOCIAL))

IMIGRAÇÃO, TERRITORIALIZAÇÃO E DESEJO.

As questões do imigrante tocam nas questões do sujeito na contemporaneidade, confrontado com os processos de globalização e a supressão angustiante das identidades e referências organizadoras. Envolve atravessamentos de processos subjetivos e sociais.Vamos abordar os apelos migratórios e identitários como diversidades de expressão dos sujeitos, como modalidades de trabalho do sujeito na direção do desejo e de um posicionamento social, modalidades com implicações clínicas, sociais e políticas. Recolhemos as experiências através de duas instituições que recebem migrantes, imigrantes e refugiados e que dá à nossa equipe a oportunidade de trabalhar com pessoas que vivem experiência radical de estrangeiridade. Nestas observações um aspecto que chama a atenção principalmente nas pessoas abrigadas é que, apesar da precariedade da situação, não se dedicam a estreitar as relações uns com os outros, a superar as diferenças de língua e de cultura seja como apoio, seja como auxílio na busca de trabalho, moradia e legalização da documentação. Posicionam-se como ímpares e esquivam-se de demonstrar conflitos de identidade ou desejo de reconhecimento. Vamos utilizar a estratégia de relacionar o deslocamento enquanto fenômeno migratório com o deslocamento como uma das leis do inconsciente freudiano e sua versão em Lacan, a metonímia, modo de caracterização do desejo. Vamos também articular o apelo à territoriedade e a busca de identidade à metáfora, à constituição de um lugar onde o sujeito se localiza, faz laço social e se pronuncia. Identidade que remete a uma ficção de sujeito construída, mas desconstruída e reinventada pelo desejo em condição itinerante. Ambos são concomitantes e compõem a historicização do sujeito, enquanto escrevem seu percurso sócio-político, sua história social. Dissociados, os processos podem gerar, de um lado, um movimento contínuo sem ponto de báscula que pode resultar no desenraizamento do sujeito, seu desarvoramento e sujeição; ou, de outro lado, a identidade cristalizada alienante que retira o sujeito de sua condição desejante e o incita ao apego a normatização. Nesse sentido, podemos reconhecer em algumas das pessoas que erram sem destino definido, os processos de dissociação da metáfora e metonímia. Do outro lado, o sujeito circunscrito ao ponto de basta, sem o necessário deslizamento do significante, é o sujeito fortemente marcado por uma identidade nacional ou étnico-religioso-cultural. Podemos refletir a partir da concepção da identidade como construção imaginária de uma representação social que mascara a presença do Outro em si mesmo e avaliza sua pertinência no mundo humano. Desta forma, a identidade surge como sintoma, defesa contra angústia de não poder saber sobre si, a não ser a partir da imagem, tomada em si mesma, como metáfora congelada em um único sentido sem, no entanto, perder sua propriedade de ser mensagem. Neste registro podem ser abordadas (Carignato, 2004) duas formas do imigrante lidar com a nova cultura: a adoção acrítica dos referentes simbólicos da nova cultura ou a sua rejeição. O imigrante pode curvar-se às exigências do eu ideal, expulsando de si as representações intoleráveis que o definem como diferente. Nesse caso, renuncia à cultura de origem, submetendo-se às imposições do Outro, o Pai da nova cultura, na tentativa de agradá-lo e seduzi-lo, buscando o seu reconhecimento. Mas paga um preço por isso. Para incluir-se na nova sociedade como parte constituinte sacrifica-se, oferecendo sem cessar - o trabalho, por exemplo - tributos às novas autoridades. O imigrante pode colocar-se também na posição oposta, em que o Pai simbólico aparece revestido pelo real, cujas exigências tornam-se irredutíveis. Apegam-se à cultura ancestral, buscando sempre ser "autênticos" e "originais", buscando uma filiação radical, sem as mediações simbólicas. Falamos até aqui do apego à identidade imaginária. Abordaremos também a instituição do ideal do eu, outro momento da construção subjetiva articulado à pertinência ao mundo da cultura. A demarcação simbólica do ideal de eu não será predicativa - indica um traço, com valor de significante, que não descreve mas designa, demarca uma posição na relação com os outros. O ideal do ego demarca não o sujeito mas o lugar de onde o sujeito surge enquanto movimento de representação - traduz-se pela possibilidade de produzir e buscar objetos fálicos e lugares que tomam a forma de ideais que orientam os laços com o Outro, os laços sociais, regidos pela ética de não se deixar ser agido pelo outro, mas sim sustentado pelo desejo e pelas identificações(Rosa, 19). Supõe portanto a constituição de um lugar social e subjetivo. Na imigração os processos sociais incidem sobre os subjetivos. Às condições de certas imigrações como as que observamos somam-se a aspectos sociais: a falta de documentação, que os tornam ilegais, as dificuldades de moradia e de trabalho. A identidade do imigrante e sua estabilidade e segurança no país ficam dependendo da documentação e a situação de não-documentação fragiliza os imigrantes sob vários pontos de vista. À suspensão identitária própria da imigração soma-se a fragilização social dificultando estabelecer laços com o outro. Os abalos identitários podem gerar abalos narcísicos. Poderiam ser libertários, mas se transformam em desorientadores. E facilitam a aceitação do mínimo para a subsistência, dispensados os artifícios narcísicos, que podem tomar forma de conformidade e submissão. Evidencia-se de modo pungente a perda de um lugar, ou, segundo Carignato (2004), um não-lugar, na medida em que não integra os lugares antigos e de memória. Assim, os estrangeiros, migrantes e imigrantes, enfrentam a dificuldade de se localizar no mundo e a dimensão da perda pode tomar um lugar primordial e promover efeitos de desenraizamento ou desterritorialização. Berta e Rosa (2005) sustentam que, frente ao perdido, existe um primeiro tempo referido à angústia. A angústia como um tempo no qual o sujeito custa a se localizar e que tem efeitos na sua posição subjetiva e política e no laço social. Para abrir as condições de um desejo possível, a elaboração do luto face ao perdido se torna crucial, pois dessa maneira o sujeito reconstitui não somente uma imagem, mas sua posição de ser causado por um desejo que lhe permita localizar-se no mundo. Para que tenha lugar discursivo, para que faça laço social, é preciso re-construir a história perdida na memória, re-construção que já implica uma deformação, permitindo passar da re-construção para a criação. No entanto, a questão política se destaca, pois as pessoas que estão em situação ilegal, não documentadas, são levadas a agir respondendo à urgência. Pressionado, desenraizado, o sujeito deixa-se emaranhar nas garras do instantâneo, do reagir em vez do agir. Então o perdido torna-se um obstáculo e cristaliza-se numa demanda de emissão de documentos que supostamente decidiriam a posição do sujeito. Apesar de inseparável da condição social em que ocorre, refletimos, a partir de uma separação artificial do processo social específico de cada grupo social que emigra, sobre as condições de possibilidade e impasses do sujeito que imigra que metaforiza a condição de todo sujeito desenraizado de si mesmo pela dimensão inconsciente, desconhecida que o habita. Ser sujeito não é essência, mas movimento, errância, um caminhar incessante em seu pensamento, vida sem repouso, sem medir distâncias. Assim a migração ou os atos de errância, não são maldição ou benção, mas uma possibilidade do sujeito que, em seu movimento de imigração, regresso e solidão, pode estabelecer uma abertura radical anterior a qualquer identidade. São certas condições sócio-políticas que tornam a condição de migrante vulnerável a toda sorte de manipulações e abusos.

PAULO ARGIMIRO DA SILVEIRA FILHO (USP (SOCIOLOGIA) SÃO PAULO)

A PSICOLOGIA É SOCIAL: O INCONSCIENTE DIVIDIDO

Faz muito tempo, no tempo em que ainda se falava da economia política (mesmo que fosse do signo), Baudrillard, no tom de escárnio, de que às vezes se valia para fazer certas denúncias, referiu-se a um reduto aparentemente infranqueável da possessividade capitalista, o inconsciente: o meu inconsciente, o teu inconsciente. Mas não o nosso inconsciente, o inconsciente não se compartilha, não se socializa. O inconsciente mostra-se assim como o lugar da singularidade, da unicidade: ele não é apenas meu, mas é o que me torna único. Alguns anos antes, Althusser, numa chave diferente, compara o caráter transhistórico da ideologia (em geral) à proposição freudiana do inconsciente, a eternidade da ideologia à eternidade do inconsciente e, por essa "aproximação", segundo o autor, "teoricamente necessária", lança a tão arrojada quanto temerária hipótese de um isomorfismo entre a ideologia e o inconsciente. Mas, independentemente de terem ou não a mesma forma, Althusser anunciava, com essa sua hipótese, um vínculo inextricável entre a ideologia e o inconsciente. Como se fosse portador de uma espingarda de cano duplo, com esse anúncio, Althusser atinge a idéia persistente, em certos círculos marxistas, de relacionar a ideologia à "falsa consciência", que se fundamenta nos vínculos entre ideologia/consciência/falsa consciência -alienação/desalienação, isto é, numa perspectiva teleológica da história. E, ao mesmo tempo, imiscui o inconsciente ao social, isto é, atribui à história familiar edipiana o estatuto de representante de uma história de mais larga duração, a história social, a história da sociedade, portanto, um Édipo familiar revestido pelo social. Acerta, pois, com o mesmo disparo, a perspectiva psicanalítica que confina o Édipo à relação parental. Ocorre, que esse "sujeito do inconsciente" de Althusser, e que é constituído pela ideologia, é um "sujeito" sem nenhuma fissura, sem nenhuma divisão e, portanto, totalmente costurado ao social. Para Althusser, é tal a imbricação entre as noções de "sujeito" e de "ideologia", que considera tautológica a proposição "sujeitos ideológicos". Passamos assim de um inconsciente absolutamente exclusivo e íntimo de cada um, do qual Baudrillard escarnece, à completa exterioridade do inconsciente proposto por Althusser: o sujeito revestido pela ideologia, o sujeito ideológico. A teoria da psicanálise proposta por Lacan parece resolver essa aparente aporia entre o "exclusivamente interno" e o "totalmente externo". Uma resolução com muitos passos. Um deles, que já deixa transparecer a direção dessa busca, é o uso da noção de "extimidade" com a qual procura aproximar o "exterior" ao "íntimo", o "externo" ao "interno", o "de fora" ao "de dentro". Nessa aproximação, um "e" aglutinante, por exemplo, "o externo" e o "interno", arrasaria completamente o intento dialético aí envolvido. Por isso, ao contrário de Althusser, que imaginava um sujeito sem fissuras, aqui com Lacan, é a divisão que constitui o sujeito do inconsciente, o sujeito como tal, portanto, um sujeito dividido. Lacan apresenta essa divisão subjetiva de distintos modos. Importa enfatizar aqui a separação entre o eu (ego) e o sujeito, que a língua francesa permitiu indicar, respectivamente, com a substantivação dos pronomes "Moi" e o "Je". Esta divisão não apenas esclarece a dimensão singular da teoria lacaniana, como a distingue como aquela que atribui ao social uma importância na estruturação psíquica que até então não tivera no campo da psicanálise. Em sua referência à constituição social do eu (ego), Lacan apenas destaca e aprofunda o que fora descoberto e elaborado por Freud: as instâncias do ideal do eu e do supereu. A novidade na teoria de Lacan é a de ter inequivocamente relacionado essa dimensão social do Édipo à ideologia. A novidade está, então, em atribuir ao Édipo e a seus "herdeiros", o ideal do eu e do supereu, um caráter ideológico. Apesar de acompanhar a senda sugerida por Lacan, este foi precisamente o limite no qual Althusser foi travado: o sujeito do desejo só pode aparecer fora do revestimento ideológico do eu. A condição, então, desse advir do "sujeito do desejo" é a de que a ideologia não recubra totalmente o social, ou melhor, que ela mesma seja construída com o intuito de fechar um vazio, um buraco, um oco, que é inerente ao social como tal: é este contorno que é ideológico. Este vazio corresponde a tal "castração" do "grande Outro", do outro sócio-simbólico: a "barra" que divide esse "grande Outro", o "A" lacaniano, que separa o significante do significado. Daí, pois, a estrita correspondência entre a "barra" que divide o sujeito e a "barra" que divide o outro sócio-simbólico. Não seria tão ousado afirmar que esta "barra" ocupa um lugar privilegiado na psicanálise lacaniana. Essa especificidade é esclarecida pelo estatuto atribuído por Lacan à ética da psicanálise, noção que é inseparável da "barra", da "divisão".É ela que, em certo sentido, vai permitir a distinção do "fora" e do "dentro", do social e, por conseguinte, ideológico, do que é propriamente do sujeito, o desejo que, como tal, se distingue da demanda e da necessidade. Esta separação do social relaciona-se de alguma maneira a algo como se parire, processo que alude á separação, a uma divisão no sujeito e não entre o sujeito e o social, e alude a produção de algo novo, à criação. Implica o abandono das relações do sujeito com os "serviços dos bens", isto é, o abandono de posições marcadas pela defesa de interesses, econômicos ou de qualquer outra natureza, previamente definidos socialmente. Enfim, um se parire que é quase o oposto do que a sociologia chama de processo de socialização. Este sim, tem uma função que se aproxima, pelos efeitos que produz, daquela que corresponde à ideologia (os aparelhos ideológicos de Estado) em Althusser: a constituição dos "sujeitos ideológicos". Neste sentido preciso, que esta ética vai servir de referência fundamental à critica - por que não? - ideológica, que Lacan, em diferentes momentos, dirigiu ao que, pejorativamente, considerava como "psicologia do eu". Uma perspectiva que fixava o "sujeito" ao social e, portanto, à ideologia e, neste sentido, funcional à sociedade e ao "serviço dos bens". Neste trabalho desenvolvo as bases teóricas e metodológicas para um diálogo interdisciplinar e crítico que definem arestas e permitem desenvolver operadores que elucidem os impasses na análise e intervenção de fenômenos atravessados pela política, pelo campo social e pela dimensão inconsciente.

ELIANE DOMINGUES (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ; MESTRE EM PSICOLOGIA SOCIAL)

POTENCIALIDADE SUBVERSIVA NO PARADOXO DA EXCLUSÃO: O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST)

Para Stédile e Fernandes (1999), o MST surge no cenário político brasileiro pela conjugação de três fatores: o primeiro deles foi o socioeconômico (modernização da agricultura brasileira na década de 70 e a conseqüente expulsão e expropriação de um imenso contingente populacional do campo); o segundo foi o trabalho das igrejas Católica e Luterana, tendo com base a Teologia da Libertação (ideológico) e o terceiro o próprio processo de redemocratização do país. A expropriação e expulsão do trabalhador rural (principal fator que está na origem do MST) não traz reflexos apenas para o plano econômico. Segundo Ianni (1972) incide sobre a cultura, altera o modo de vida e as referências do camponês. Quando o camponês se encontra ideologicamente vinculado ao campo - ao fazendeiro, aos meios de produção, à família, aos outros trabalhadores, à capela -, " ele se compreende como membro de um nós fortemente carregado de valores e relação de tipo comunitário" (p.197). Faz parte de um sistema de relações, que estão marcadas por significados, valores e ações características do mundo rural, em que predominam as relações face a face. Quando transformado em proletário rural, encontra-se prática e ideologicamente separado do campo, "ele se encontra fora da fazenda, física e ideologicamente". Ele pode perceber-se com seu grupo - os outros trabalhadores - como divorciados, estranhos ao latifundiário, pode perceber-se como categoria distinta. Esta separação, por um lado, possibilita ao camponês se libertar da servidão material e ideológica a que estava submetido ao fazendeiro; favorece a identificação aos semelhantes, enquanto classe distinta e oposta a dos latifundiários; por outro, implica a perda de uma referência objetiva, que é a relação com a terra e todas as demais referências próprias do mundo rural, na qual o camponês foi socializado e se constituiu enquanto sujeito. Ou seja, o próprio processo de expulsão e expropriação que têm como conseqüências a pauperização e sofrimento, também pode trazer a possibilidade do reconhecimento dos trabalhadores enquanto semelhantes e a elaboração de ações coletivas. Para Freud, "a necessidade de uma ação comum, sem investimento libidinal, pode facilitar a instituição de uma associação temporária, mas ela não poderia manter vínculos de modo duradouro" (Enriquéz,1999, p.62). O que une os indivíduos em um grupo é a existência de um duplo vínculo libidinal. Um vínculo vertical que une os indivíduos ao líder e um vínculo horizontal que une os indivíduos entre si. O vínculo vertical, que liga os indivíduos ao líder, se dá pela substituição do ideal do eu de cada um dos indivíduos pelo líder. Por sua vez, o fato de todos possuírem o mesmo ideal do eu é o que possibilita o vínculo horizontal, a identificação; o indivíduo se reconhece no outro pelo que tem em comum: o líder, no lugar do ideal do eu. Uma idéia abstrata (ideais revolucionários) ou um desejo compartilhado também pode ser este elemento comum que possibilita a identificação dos indivíduos. Segundo Bertrand (1989), a adesão a um ideal, a um projeto histórico - que vai além dos interesses individuais, mesmo que os inclua - é o que permite entender o sacrifício do sujeito em nome de uma grande causa, que nem sequer poderá ver triunfar. " Um ideal dá uma imagem engrandecida, enaltecida de si mesmo; contém a promessa de uma realização, de uma restauração, que vai além da satisfação de reivindicações, certamente legítimas, mas limitadas". (p.25) Quer dizer, a adesão a um ideal social permite ao sujeito uma satisfação narcisista; por isto os ideais são tão fortemente investidos. No plano social, possuir um mesmo ideal pode ser o suporte da identificação dos indivíduos em um grupo ou movimento social. No MST, em ocasião da realização da pesquisa de mestrado ¬" A luta pela terra e o MST: contribuições da psicanálise"identifiquei a existência de dois tipos de ideias: os revolucionários, sustentados pelas lideranças e que aparecem em suas falas, nos objetivos e músicas do movimento; a terra como ideal, que aparece na fala daqueles sujeitos que constituem a base do MST e que possivelmente é o ideal comum que possibilitou o estabelecimento do vínculo vertical, suporte para identificação entre os semelhantes. Embora os dois ideais sejam importantes para o MST, cheguei a conclusão de que a terra é o ideal compartilhado que possibilita o vínculo vertical entre os indivíduos, na medida em que é na terra que os indivíduos investem de forma maciça. Isto traz como conseqüência a possibilidade de que os vínculos sejam ameaçados quando a terra é conquistada, impondo-se a necessidade de que os ideais do movimento sejam também investidos, para que ele possa conquistar as transformações sociais que almeja. Juntamente aos ideais, o reconhecimento do sujeito da sua insuficiência e necessidade do semelhante foi o ponto de partida para o estabelecimento de uma aliança fraterna que possibilitasse a organização de ações coletivas no MST. Escapar da pretensão a auto-suficiência e reconhecer a necessidade do outro é, portanto, fundamental para o estabelecimento do vínculo horizontal (identificação) e da cumplicidade entre os semelhantes que permite, pela conjugação de forças, enfrentar um poder vivenciado como absoluto. Logo, o outro, o semelhante tem um papel fundamental, mas que nem sempre é considerado pela psicanálise. Kehl (2000), no entanto, considera fundamental o papel do semelhante na constituição do sujeito e propõe o conceito de função fraterna. A função fraterna, proposta pela autora, não substitui a função paterna na constituição do sujeito, mas faz suplência a esta, na medida em que possibilita separar a Lei da autoridade do pai real. Além disso, as experiências compartilhadas entre os irmãos permitem uma série de identificações horizontais "(...) secundárias em relação à identificação com o ideal representado pelo pai, mas essenciais, no sentido da diversificação que possibilita quanto aos destinos pulsionais que têm que ser constituídos pela vida afora." (p.39) No grupo, a identificação horizontal e a experiência compartilhada possibilitam a troca da saberes e experiências entre os semelhantes que, pela própria multiplicidade, permite relativizar o discurso da autoridade e a expressão das demandas insatisfeitas que esta não consegue calar. (Kehl , 2000) Pensar o MST a partir desta idéia de função fraterna, permite entender como se estabelece no coletivo a separação entre a Lei e as arbitrariedades impostas por aqueles que detêm o poder; esta operação se processa em nível de trocas entre os semelhantes e permitiram enfrentar um poder antes tido como absoluto e empreender ações coletivas. A poderosa aliança entre irmãos, que até mesmo o senso comum reconhece seu poder contestador e criativo, no MST possibilitou questionar a legitimidade da propriedade da terra, reivindicar seu direito à terra, empreender ações coletivas e elaborar sua principal estratégia de ação: a ocupação. No caso do MST, o sentimento de pertença a uma fratria, a uma comunidade de irmãos também vem oferecer o amparo (para quem está no desamparo, desempregado, sem um lugar social), certezas (o direito à terra) e o reconhecimento do semelhante (todos estão numa situação parecida o que possibilita o reconhecimento no outro e pelo outro); além da possibilidade que indivíduo reconstrua sua identidade de camponês. Contudo, corre-se o risco da cristalização, que o espaço antes contestador e criativo se cristalize e se transforme num campo de certezas e verdades inquestionáveis, sobre como deve ser o modo de produção, a organização, educação etc; e quem conteste seja condenado ou excluído pelo grupo. Mesmo com este risco de cristalização, a aliança fraterna no MST vem mostrando que não é uma organização passageira, mas capaz de renovar seu poder contestador (atualmente não se questiona somente a concentração da propriedade da terra, mas também as sementes transgênicas) e criativo. Referências BERTRAND, M. (1989) O homem clivado: a crença e o imaginário. In: SILVEIRA, P. & DORAY, B.(Org.), Elementos para uma teoria marxista da subjetividade.(pp. 15-40). São Paulo: Vértice. ENRIQUEZ, E. (1999) Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. (Teresa Cristina Carreteiro & Jacyara Nasciutti , Trads.) Rio de Janeiro: Zahar. IANNI, O. (1972) Relações de produção e proletariado rural. In T. SZREMCSÁNYI, & O. QUEDA, (Orgs.), Vida rural e mudança social. (pp.185-197) São Paulo: Editora Nacional. KEHL, M. R. (2000) Existe uma função fraterna? In: KEHL, M. R. (Org.), Função fraterna. (pp.31-47) Rio de Janeiro: Relume Drumará. STÉDILE, J. P. & FERNANDES, B. M. (1999) Brava gente.: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo

   
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