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ANAIS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO - RESUMO
ISSN 1981-4321

Tema: Mesa Redonda - Processos Organizativos, Comunidades e Práticas Sociais

COMUNIDADE, DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

Financiador:
Tania Barros Maciel ( )
Autores:
A relação entre Comunidade, Desenvolvimento e Meio Ambiente vem ganhamdo maior foco nas discussões psicossociológicas a partir da década de 1980. No início dessa década a vertente cultural ganhou importância nos debates sobre Desenvolvimento, sendo então elaborada a noção de Desenvolvimento Endógeno, na qual o Desenvolvimento "deve partir dos contextos reais das sociedades e das necessidades e aspirações das mesmas, bem como considerar os recursos humanos, materiais, naturais e financeiros" (CAO TRI, 1984. p. 14). Assim, o ser humano e sua cultura devem estar na base do processo de desenvolvimento, para que cada país ou região encontre o seu estilo próprio de desenvolvimento (CAO TRÍ, 1984; NHU HÔ, 1988). Atualmente é discutida a necessidade de uma perspectiva de Desenvolvimento advinda dos países de terceiro mundo. Neste sentido, sobressaem os princípios do Desenvolvimento Endógeno, no qual a cultura local é a base para o desenvolvimento e os contextos reais. A valorização cultural possibilita que recursos e tradições sejam mantidos e aproveitados. O conceito de Desenvolvimento Local retoma a perspectiva cultural, acrescentando a importância da participação da comunidade no planejamento e ações de desenvolvimento. Maciel (2003) destaca que a concepção de Desenvolvimento Local tem como uma de suas questões principais a participação da população no processo de desenvolvimento, tanto no nível do planejamento quanto no nível da ação. Com isso, são valorizados os saberes, as memórias e as aspirações dos moradores locais. A cultura e os recursos locais direcionam que caminho deverá seguir o desenvolvimento de cada comunidade. É nesta perspectiva que propomos uma discussão aprofundada sobre o desenvolvimento e suas implicações sociais. MACIEL, Tania M. F. B. Brésil: le pouvoir de la diversité culturelle. Paris: UNESCO, 2001. MOSCOVICI, Serge. De la nature: pour penser lécologie. Paris: Métailié, 2002. NHU HÔ, Pham. Le développement endogène comme alternative. Potentialités et obstacles face à son déploiement. . In: développement endogène: aspects qualitatifs et facteurs stratégiques. Paris: UNESCO, 1988, pp. 35-69 RIST, Gilbert. Le développement: Histoire d'une croyance occidentale. Paris: Pr. Sciences PO, 1996. CAO TRÍ, Huynh (Org.) Développement Endogène: aspects qualitatifs et facteurs stratégiques. Paris: UNESCO, 1988.
 
 

Resumo das Falas

TANIA MARIA DE FREITAS BARROS MACIEL(UFRJ)

A PSICOLOGIA SOCIAL E O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO

A natureza, como um arco-íris em seus tons de verde, cinza, azul, transpondo terra, rios, mares, oceanos, calotas polares, culturas e civilizações, nos abre um campo de possibilidades, interações e conexões. Pensar a natureza sob a perspectiva de Serge Moscovici (2002), num momento globalizado e conturbado por fenômenos naturais, culturais e sociais, nos leva a reconsiderar a fragilidade da presença humana em harmonia com a natureza. "Eu sei que a natureza não tem nada de verde nem de cinza, que ela representa, na verdade, uma paleta infinita de cores" (MOSCOVICI, 2002, p. 13). A aproximação com a natureza se revela como uma forma de subversão que renova a relação do homem com o seu mundo. A correlação que faz confere à natureza uma conotação específica. Moscovici (2002) afirma que "a natureza não necessita ser precisa. Ela é". Considerando as alterações psicossociais e os conflitos sociais da atualidade fortemente influenciados por ambos processos, o desenvolvimento e a globalização, esse estudo se propõe enfatizar evidenciando as interferências exercidas sobre o "homem", sua cultura e sua qualidade de vida dos diversos paradigmas de Desenvolvimento existentes. Segundo Celso Furtado (1999, p. 18) "quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos desenvolvimento". No século passado diante de tantos problemas sócio-ambientais surgem, a partir dos anos 1970, várias propostas alternativas à idéia inicial de desenvolvimento, tais como o Ecodesenvolvimento, o Desenvolvimento Endógeno, o Desenvolvimento Local e o Desenvolvimento Humano Sustentável. Diferentes correntes se dispõem a discutir e propor conceitos de Desenvolvimento. A primeira corrente a questionar o desenvolvimento economicista foi o Ecodesenvolvimento, que reformulou a escala de prioridades, fiel ao princípio do bem-estar humano. Essa proposta debate a dinâmica mercado - sociedade e sugere a harmonização do crescimento econômico em relação ao uso racional dos recursos ambientais. Exalta a valorização e o aproveitamento de recursos e tecnologias locais, bem como o potencial transformador dos valores comunitários. Inspirado no Ecodesenvolvimento, o Desenvolvimento Sustentável centra-se no discurso ecológico. "O Nosso Futuro Comum", relatório publicado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente, divulgou amplamente o conceito, apontando mudanças nos valores e nas estruturas políticas. Nenhum questionamento à dinâmica econômica foi feito no relatório, apesar das conseqüências sociais e ambientais serem parcialmente produto das relações Norte-Sul. A despeito de sua urgência nos países em vias de desenvolvimento, Saúde e Educação não foram indicados como aspectos cruciais. No início da década de 80 foi elaborada a noção de Desenvolvimento Endógeno que via na vertente cultural um importante fator no que diz respeito ao processo economicista de desenvolvimento. Huynh Cao Trí (1984) afirma que o Desenvolvimento Endógeno deve partir dos contextos reais das sociedades e das necessidades e aspirações das mesmas, bem como considerar os recursos humanos, materiais, naturais e financeiros (p. 14). Esta proposta coloca no homem e sua cultura - tradições, valores, necessidades e recursos naturais e suas técnicas - na base do processo de desenvolvimento, para que cada país ou região encontre o seu estilo próprio de desenvolvimento (Cao Trí, 1984; Nhu Hô, 1988). Milton Santos (2003) pontua que a cultura local, diferenciadora das nações, reage à cultura de massa, homogeneizante cultural - que age em benefício dos perversos objetivos de desenvolvimento econômico capitalista através do atual processo de globalização. A reação da cultura local é efetiva quando esta reutiliza os próprios instrumentos da cultura de massa para enfatizar o cotidiano dos pobres, das minorias e dos excluídos, exaltando o abismo social aprofundado pelo processo de globalização. O produto cultural dessas populações, segundo o autor, seriam os reveladores da verdade e do movimento próprio das sociedades, a expressividade dos símbolos (fala, música, formas de intercurso e solidariedade entre as pessoas) das comunidades impossibilitadas de participar da cultura em massa seriam a força que integraria o conteúdo humano da sociedade com o território dos pobres e excluídos, gerando desta forma, uma integração orgânica única.(p. 144 - 145). A proposta de Milton Santos (2003) por uma nova globalização baseia-se no hibridismo cultural valorizando a diferença, na busca por uma universalização cultural, ao invés de, por uma normatização global. A normatização ignora as históricas e atuais condições de vida das sociedades. Desta forma, a solidariedade se apresentaria em sua essência, através do respeito às diferenças, resgatando a proposta de convivência pautada na relação de igualdade estabelecida por direito, e não, através de 'ajudas' ou imposições características de uma relação verticalizada de domínio e submissão. Atualmente é discutida a necessidade de uma perspectiva de desenvolvimento originária do Sul, livre de noções imitativas e nominações desculturizadoras, na qual a educação torna-se o ponto central e fio condutor do bem-estar. Neste sentido, sobressaem os princípios do Desenvolvimento Endógeno, no qual a cultura local é a base para o desenvolvimento e os contextos reais, ponto de partida nos caminhos ao bem-estar. A valorização cultural possibilita que recursos e tradições sejam mantidos e aproveitados. O Desenvolvimento Local acrescenta esta perspectiva cultural, ressaltando a importância da participação da comunidade no planejamento e ações de desenvolvimento. De início, a problemática do desenvolvimento está inscrita no mais profundo do imaginário ocidental. Que o crescimento ou o progresso possam se desenvolver infinitamente, eis a afirmação que distingue radicalmente a cultura ocidental de todas as outras. (Rist, 1996, p. 389) Os conceitos referidos têm pontos em comum e constituem uma nova proposta frente ao modelo vigente. Perspectivas que integrem no espaço e no tempo o individual, o social e o ambiental são necessárias. A Psicologia Social, na sua compreensão da construção social, enriquece a busca paradigmática ao incluir a dinâmica cultural, as influências recíprocas homem - meio e os valores priorizados pelos diferentes grupos. Somente um novo olhar do humano, reconhecendo nele a nossa própria humanidade possibilitará realmente o exercício da liberdade e o encontro com o bem-estar. Estas idéias já vinham sendo amadurecidas por pensadores como Huynh Cao Trí (1984) e Pham Nhu Hô (1988) desde a época em que fizeram parte do corpo técnico da Unesco. A Unesco desde 1968 mantinha um discurso diferenciado no que concerne o desenvolvimento de países terceiro mundistas. É relevante mencionar que os autores mencionados eram provenientes de países "subdesenvolvidos" e já viam na valorização cultural e local, a possibilidade de um tipo de desenvolvimento mais eqüitativo e adequado (MACIEL, 2001). O Desenvolvimento Local, enquanto caminho para se atingir o desenvolvimento humano sustentável, encontra na Pesquisa Participante (ou enquete sistemática) um instrumento adequado aos seus fundamentos. Segundo Georg Simmel, toda cultura humana é fadada a desaparecer quando ela não encarna mais o espírito de onde ela nasceu, desta forma, a pesquisa participante opera no sentido de viabilizar o fortalecimento dos laços sociais de forma a utilizar as crenças, os valores e a cultura local no sentido de subsidiar tal comunidade em seu próprio desenvolvimento. Se os aspectos ecológicos e culturais já norteavam alguns intelectuais preocupados com os rumos de processo de desenvolvimento, Henri Bartoli (1999) cunhou o conceito de Desenvolvimento Humano Sustentável (ou Durável), no qual "a qualificação do desenvolvimento 'humano', para significar claramente que o que se tem em vista é o desenvolvimento dos seres humanos mais que a produção de riquezas mesmo sendo ela tão necessária" (BARTOLI, 1999). Portanto, o crescimento econômico apenas, não é o referencial ideal de desenvolvimento. Há de se considerar as limitações ecológicas e o aspecto humano. É em referência ao estado real do mundo e em vista de permitir seu discernimento e sua transformação segundo as capacidades criativas dos homens que o "novo paradigma" deve ser pensado. (BARTOLI, 1999: 9) Referências Bibliográficas BARTOLI, Henri; Repenser le Développement: En finir avec la pauvreté; Paris:UNESCO; Economica, 1999. BRUNDTLAND, G.H., Nosso Futuro Comum: Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: FGV, 1987. CAO TRÍ, Huynh (Org.) Développement Endogène: aspects qualitatifs et facteurs stratégiques. Paris: UNESCO, 1988; FURTADO, Celso. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. HOUTART, F. Developpement, environnement et rapports sociaux. In: Alternatives Sud, quel Developpement Durable pour le Sud? Paris: Hermattan. Vol II, 1995. MACIEL, Tania M. F. B. Brésil: le pouvoir de la diversité culturelle. Paris: UNESCO, 2001. MOSCOVICI, Serge. De la nature: pour penser lécologie. Paris: Métailié, 2002. NHU HÔ, Pham. Le développement endogène comme alternative. Potentialités et obstacles face à son déploiement. . In: développement endogène: aspects qualitatifs et facteurs stratégiques. Paris: UNESCO, 1988, pp. 35-69. RIST, Gilbert. Le développement: Histoire d'une croyance occidentale. Paris: Pr. Sciences PO, 1996. SANTOS, Milton. Por Uma Outra Globalização: do Pensamento Único à Consciência Universal. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.

SAMIRA LIMA DA COSTA (UFRJ / FAESA - VITÓRIA)

MEMÓRIA SOCIAL NA ILHA DAS CAIEIRAS - ENTRE O VIVIDO E O NARRADO

Nesta pesquisa faço uma análise sobre as formas como os moradores da Ilha das Caieiras - bairro periférico de Vitória, ES - e entorno vivenciaram e constroem suas memórias sobre o lugar a partir das diferentes transformações ocorridas na população, na paisagem e nas atividades ocupacionais da região, tradicionalmente artesanais. Essa, como muitas outras, foi uma áreas de aterro de manguezal. A Ilha das Caieiras situa-se na Zona Norte/Noroeste de Vitória, junto a um dos canais do estuário do Rio Santa Maria. É uma área tradicionalmente de pescadores e vem passando por um processo de urbanização que se acelerou a partir de fins da década de 1970. As transformações inerentes ao desenvolvimento urbano têm levado a mudanças significativas nas características sócio-culturais, ambientais e ocupacionais da região. O manguezal que separava a Ilha das caieiras do continente foi aterrado com lixo; novas famílias foram morar na região, tanto em invasões sobre o manguezal, em palafitas, quanto em pequenas casas de alvenaria construídas aos poucos no entorno do manguezal; surgiram comércios locais e instituições do poder público, como unidades de saúde e escolas; o crescimento da população local por um lado criou divisões internas, por outro facilitou a formação de organizações civis como associações e cooperativas. Esta pesquisa analisa as transformações vividas pela região nos últimos 30 anos, ou seja, do final da década de 1970 até a primeira década do século XXI. Este recorte temporal foi delimitado por ser o período no qual a população vivenciou mais intensamente as transformações da região. O bairro escolhido é hoje considerado um pequeno recorte na chamada "Região da Grande São Pedro", em Vitória. Abordo nesta pesquisa dois grupos de atores sociais: 1) os moradores mais antigos da Ilha das Caieiras, em sua maioria pescadores, e seus descendentes, ou antigos moradores da Ilha; 2) os moradores das "invasões" ocorridas nas décadas de 1970 e 1980 sobre o manguezal que separava a Ilha das Caieiras e o continente, ou antigos moradores da invasão. Assim, ao mencionar a "Ilha das Caieiras e Entorno" refiro-me mais especificamente à Ilha das Caieiras, São Pedro I e São Pedro II. Estes bairros são característicos dos processos de transformação e ocupação ocorridos nas periferias de Vitória, no Espírito Santo, e seus moradores apresentam em suas falas diferentes facetas de um mesmo processo, explicitando estes dois grupos: os antigos moradores da Ilha e os antigos moradores da invasão. As narrativas sobre as relações existentes entre esses diferentes grupos e suas construções ao longo dos anos compõem o mosaico daquilo que podemos chamar de memórias do bairro, meu objeto de estudo. Na pesquisa social qualitativa a observação participante é uma ferramenta permanente, com a qual são tecidas considerações a partir das contribuições do sujeito pesquisado e do pesquisador. Com relação à participação do sujeito pesquisado, Becker (1999) comenta que isso enriquece a pesquisa na medida em que as diferentes histórias apresentadas não precisam, necessariamente, ser convergentes ou divergentes. Os métodos de pesquisa propostos a partir desta ótica são psicossociológicos e etnográficos. Na pesquisa psicossociológica, . não podemos tomar a distância que, de certo modo, conforta o historiador clássico - para quem a objetividade do fato estaria garantida pela distância no tempo; e nem tampouco desejamos nos valer da neutralidade científica - delimitando um recorte capaz de garantir a distância entre nós e nosso "objeto". Muito ao contrário, nossos esforços de pesquisa se conduzem na Atualidade e se dirigem à compreensão do tecido social que nos envolve, do sujeito que somos e do modo como produzimos conhecimento (PEDRO, 2003. P. 29). A psicossociologia envolve levantamento, descrição e interpretação de produções coletivas, tendo como característica básica a idéia de gerar proposições práticas. Para tanto, a pesquisa psicossociológica lança mão de ferramentas etnográficas, buscando registrar fenômenos imponderáveis da vida real. É também através da observação participante que as histórias contadas poderão constituir um mosaico para a construção coletiva da Memória do Bairro. A Memória de Bairro circunscreve-se no campo da Memória Coletiva, caracterizada por Halbwachs como a "memória de um grupo, na qual se destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele" (Halbwachs, 2006, p. 51). Assim, para a coleta da Memória do Bairro utilizo o método de história oral a partir de entrevistas com moradores. Lembrando Bosi (2004), uma memória se desenvolve a partir de laços de convivência; desta forma, o pesquisador em situação de observação participante não se constitui necessariamente em um agente facilitador de processos relevantes de memória social, ainda que em situação etnográfica. Por este motivo, foi interessante nesta pesquisa a experiência de trabalhar com a passagem de histórias orais entre avós e netos. Desenvolver pesquisa sobre memória de bairro é, grosso modo, pesquisar o espaço no tempo, e o tempo no espaço. Passa então a ser relevante a questão espacial, tanto quanto a temporal. E a questão espacial me leva a perguntar sobre a delimitação que escolhi. O que é um bairro? Uma primeira concepção que podemos utilizar para bairro está ligada aos critérios para delimitação da área pela administração pública, que definem os seus limites podendo ser compreendido como a menor porção da unidade administrativa. Muitas vezes, porém, os limites desenhados pelo poder público não coincidem com o bairro "vivido" pela população. Os moradores entrevistados apresentaram vários elementos que caracterizaram a diferenciação já exposta desde a primeira entrevista, denominada ponto zero: a existência de dois grupos naquela comunidade - os antigos moradores da Ilha e os antigos moradores da invasão. A relação que se estabelece entre esses dois grupos é semelhante àquela observada por Elias (2000) em seu estudo sobre os estabelecidos e os outsiders. Entretanto, na Ilha das Caieiras esta relação reserva algumas observações que lhe são bastante particulares. Assim como Elias (2000) identificou na comunidade que estudou, na Ilha das Caieiras estabeleceram-se normas coletivas e, principalmente, memórias coletivas, nas quais o segundo grupo não se encaixava. Desta forma, a memória deste grupo passou a ser considerada por muitos desses moradores antigos como uma forma de enfrentamento e resistência à chegada de novos moradores. Em outras palavras, essa memória coletiva passou a ser utilizada como ferramenta de diferenciação entre os dois grupos, garantindo maior prestígio ao primeiro, por ser tradicional. Aqui, a palavra tradicional ganha status de verdadeiro, original. Assim, ser um morador tradicional do lugar é hoje, na Ilha das Caieiras, ser um verdadeiro morador da Ilha. As narrativas têm roteiros próprios e apresentam recortes escolhidos como relevantes para se dizer às novas gerações. São fatos registrados ora na oficialidade histórica ora na memória afetiva e singular de uma família ou grupo. Como diz Costa (1998), "das leituras eventuais é extraído unicamente o quinhão interessante, apurado por um gosto determinado pela condição de moradores e, portanto, de detentores da verdade que lhes convém" (p. 52). Foram abordados vários temas, aqui agrupados em categorias com objetivo de facilitar a organização e análise dos dados. Os temas principais foram: ascendência, moradias, trabalho, violência e desenvolvimento. Aos dados coletados nas entrevistas somaram-se informações conseguidas a partir da pesquisa bibliográfica. Talvez o sentimento de impotência diante dos problemas educacionais com as crianças, expresso por vários dos entrevistados, tenha transformado o momento das entrevistas em espaço eleito para a transmissão de conteúdos selecionados como importantes para a formação desta geração sem, entretanto, conseguir as condições necessárias. Nas falas dos moradores, as memórias apresentam-se de forma quase linear do ponto de vista cronológico, numa tentativa explícita de tornar o momento de "passagem" da memória a outras gerações um ritual pedagógico. Ainda assim, as falas conjugam a história recontada com nostálgicas recordações. E nessa passagem ocorre uma convergência entre os dois grupos, um ensaio de unificação do bairro. Essa conjunção dos dois grupos, às vezes involuntariamente circunstancial às vezes por opção, parece conferir forças e identidades locais que englobam estes e outros grupos da região. É aí, nessas convergências, que os grupos tecem redes entre as redes já formadas, dando ao bairro um aspecto cerzido. A transformação aparentemente desordenada que vem ocorrendo no bairro estudado, em seu interior apresenta uma ordenação de discursos e de ações, baseada principalmente na identidade local que se constrói tanto pela memória do bairro quanto pelas percepções e apropriações locais das transformações globais. PEDRO, R. M. L. R. As redes na atualidade: refletindo sobre a produção de conhecimento, In: D'ÁVILA, M. I. e PEDRO, R. Tecendo o desenvolvimento: saberes, gênero, ecologia social. Rio de Janeiro: Mauad-Bapera Editora, 2003. P. 29 - 38. BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 4ª Ed - São Paulo: HUCITEC, 1999. COSTA, I. T. M. Fragmentos discursivos de bairros do Rio de Janeiro: entrevistas. Rio de Janeiro, RJ: UNI-RIO, Curso de Mestrado em Memória Social e Documento, 1998. HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006. ELIAS, Norbert. Estabelecidos e outsiders. Campinas, Hucitec, 2000.

LUCIANA ALVARENGA (ASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL DE VITÓRIA - FAESA / ES)

COMUNIDADES TRADICIONAIS NO ESPÍRITO SANTO E O REGISTRO IMAGÉTICO DA MEMÓRIA

Povos das Tradições são, conceitualmente, grupos que fazem do lugar em que vivem sua própria identidade, sua própria existência. São, muitas vezes, brasileiros que poucos conhecem, comunidades de origens que estão se perdendo no tempo e na história. À medida que as populações se ambientaram em determinadas regiões, também foram consolidados os conhecimentos sobre o meio, seus limites e potencialidades, que implicaram na elaboração de técnicas adaptadas, estruturação de dietas e sistemas produtivos diversificados, relacionados à dinâmica dos ecossistemas. Este saber e o saber-fazer gerados no âmbito destes grupos não urbanos/industriais, transmitidos oralmente de geração em geração, vêm ao longo do tempo permitindo a manutenção da biodiversidade e sociodiversidade (Candido, 1965; Soares, 1981; Almeida, 1988; Diegues, 1996, 2000; Alvarenga, 2002; Costa, 2006). As comunidades tradicionais apresentam uma organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, através do desenvolvimento de uma produção de pequena escala mercantil em uma relação direta com ambiente natural. Meios de produção tais como a pesca, a agricultura, o artesanato, o extrativismo, entre outros, são desenvolvidos concomitantemente, traçando um perfil de diversificação das atividades econômicas vinculadas aos ciclos ecológicos (Candido, 1965; Diegues, 1997, 2000). A tradição é um importante meio de lidar com o tempo e o espaço. Assim, qualquer atividade ou experiência particular é inserida na continuidade entre passado, presente e futuro. Estes tempos sociais são estruturados por práticas coletivas, constituídas em ações recorrentes. Neste contexto podemos dizer, concordando com Hall (2005), que a identidade é uma construção social, formada ao longo do tempo através de processos inconscientes. Dessa forma, os indivíduos vão se construindo, estão sempre em processo. Isso significa dizer que a identidade não é inata, pelo contrário, ela esta sempre "sendo formada". A sociedade não é, portanto, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo "descentrada" ou deslocada por forças fora de si mesma. (Hall, 2005). Desde um período muito mais recente do que a formação da biodiversidade e da diversidade cultural, Povos e Ambientes Naturais vêm sofrendo um processo de destruição sem precedentes diante das mudanças, no tempo e no espaço, marcadas pelo individualismo, privatização de recursos, destruição da natureza e do próprio ser humano (Alvarenga, 2004; Costa 2006). Na história brasileira, a relação com o processo exploratório dos recursos naturais e uso e ocupação de terra não têm levado em conta os custos sociais e ambientais ocasionados pela implantação de grandes empreendimentos. A percepção de recursos inesgotáveis da cultura de exploração sem restrições tem gerado conseqüências sem precedentes no que se refere à perda de biodiversidade e à perda da sociodiversidade (Dean, 1995; Costa, 2001). No caso da região sudeste, esta exploração historicamente tem afetado diretamente a mata atlântica e os povos que dela e nela vivem. Contudo, estima-se que cerca de 6 a 8% da área original deste bioma permanecem na forma de fragmentos isolados de mata, imersos numa matriz de pastagens, áreas agrícolas, áreas urbanas e áreas industriais. Na mesma velocidade do desaparecimento das áreas biológicas, a diversidade humana está desmoronando (Sahtouris, 2000), tradições estão se perdendo na história. Este é o preço da hibridização: as raízes locais estão desaparecendo, sendo esquecidas (Burke, 2003). É parafraseando Thompson (1995), que este estudo seguirá seu caminho: a vida social não é, simplesmente, uma questão de objetos e fatos que ocorrem como fenômenos de um mundo natural: ela é, sobretudo, uma questão de ações e expressões significativas, de manifestações verbais, símbolos, textos e artefatos de vários tipos, e de sujeitos que se expressam através desses artefatos e que procuram entender a si mesmos e aos outros pela interpretação das expressões que produzem e recebem. Assim, em sentido mais amplo, o estudo dos fenômenos culturais de comunidades pode ser pensado como o estudo do mundo sócio-histórico constituído como um campo de significados. Pode então ser visto como o estudo das maneiras - como expressões significativas -, de como elas são produzidas, construídas e recebidas por indivíduos situados em um mundo sócio-histórico. Estes estudos permitem uma aproximação à comunidades pouco conhecidas, mas que muito tem colaborado para a manutenção da diversidade cultural e ambiental, comunidades com as quais temos muito a aprender. Percorrendo o litoral de norte a sul do estado do Espírito Santo, encontramos a permanência de manifestações culturais em uma rica combinação indígena e africana. Do encontro do tambor de congo afro com a casaca indígena nas cantigas de São Benedito à moqueca de peixes, frutos do mar e o prato típico da Semana Santa, a torta capixaba. Esses são alguns exemplos de ícones da diversidade cultural existente neste estado, representada por grupos de pescadores, coletores, artesões, entre outros, em que os ecossistemas naturais são fontes tradicionais de recursos, dos quais dependem para sobreviver dentro de uma lógica mais ampla de reprodução social e cultural. Trabalhos realizados com comunidades tradicionais do Espírito Santo, como comunidades de marisqueiras e pescadores de Anchieta, Paneleiras de Barro de Goiabeiras Velha (Alvarenga, 2002), Quilombolas do norte do ES (Alvarenga, 2005), Pomeranos de Santa Maria de Jetibá (Alvarenga, 2005) e comunidade de Caieiras (Costa, 2006) têm demonstrado um grande sincretismo cultural. Contudo, as comunidades possuem traços particulares, que permitem a singularidade não só da comunidade, mas também de seus habitantes, nesta diversidade capixaba. Um dos exemplos de particularidade é a utilização do idioma pomerich, na comunidade de pomeraneos localizada em Santa Maria de Jetibá. O estudo das artes do fazer e do saber destas comunidades, a partir da história oral e do uso da imagem como estratégia para valorização da história local, da memória coletiva e dos recursos naturais regionais permitem uma aproximação a estas comunidades e a compreensão das particularidades na diversidade. Esta compreensão é necessária, visto o desmoronamento da diversidade humana e o desaparecimento das áreas biológicas, conforme já colocado por nós. A história oral, além de contribuir para o resgate do velho como elemento valorizado socialmente em seu grupo, contribui para a coletivização da memória, favorecendo a produção de memórias familiares e comunitárias. O conceito de comunidade que propomos pressupõe o olhar sobre a individualidade e os usos comuns dos indivíduos no coletivo constituído nas relações histórico sociais. Dessa forma, realizar pesquisa social em comunidade implica, portanto, em garantir os espaços das diferenças, buscando as identidades de grupo. Assim, a história oral se apresenta como importante ferramenta para o processo de construção da memória coletiva. Ela favorece a sensibilização de crianças, valorização de idosos e resgate da memória. Também o uso da imagem, a partir da antropologia visual permite: coloca o leitor frente à integridade de cada momento de comportamento congelado na fotografia e, uma interação com os grupos de estudo a partir da escolha coletiva das imagens com os sujeitos que participam da pesquisa. Neste contexto, a fotografia se apresenta como importante instrumento de pesquisa, desde o processo de análise à exposição dos dados. Através do congelamento de momentos da vida cotidiana das comunidades tradicionais, recapitulados pela seleção das seqüências fotográficas. As imagens tomadas no trabalho de campo acabam por criar um elo entre o pesquisador e a comunidade, se apresentando como motivo de retorno aos espaços das pessoas envolvidas na pesquisa, abrindo caminho para um maior estreitamento de relações e novas descobertas (Nunes, 2005; Alvarenga, 2002; 2004a; 2005b). A publicação de Balinese Character: A Photographic Analysis, pela New York Academy of Sciences, é considerada o marco inicial da antropologia visual, pois pela primeira vez, a fotografia é utilizada como instrumento de pesquisa e não apenas como apêndice demonstrativo. A partir do uso da imagem e do resgate da memória, utilizando a antropologia visual e a historia oral como processos metodológicos, trabalhamos com a interpretação da convivência secular das comunidades com seu entorno. A memória ancestral está inserida no presente, se funde e se transforma com as necessidades de adaptação às mudanças culturais. O estudo da cultura material das comunidades pode possibilitar a compreensão dos objetos, atitudes, mentalidades, valores e suas expressões, concretizações ou simbolizações, bem como, a representação em cada prática relacionada. Referências Bibliográficas ALMEIDA, R. O tanino da casca do mangue e o artesanato capixaba das panelas de barro. Ramsar Convention - Wetlands for the future. WWF/99BRA/4. São Paulo, Brasil, 2001. ALVARENGA, L. Aspectos sócio-ambiental da comunidade Quilombola de São Jorge, São Mateus/ES. Relatório técnico. Vitória: INCRA, 2005. SOARES, L.E. Campesinato: ideologia e política. RJ, Zahar, 1981. DIEGUES, A.C. O mito moderno da natureza intocada. S.P., Hucitec, 1996 COSTA, S. L. Corpo, ambiente e afetividade na reconstrução da prática docente. São Carlos, SP: Programa de Pós-Graduação em Educação - UFSCar, 2001. Dissertação de Mestrado. CÂNDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito, Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 1a ed., Rio de janeiro: José Olympio, 1964. Palavras-chave: Cultura material, comunidade pomerana, floresta atlântica, antropologia visual, história oral.

   
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