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ANAIS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO - RESUMO
ISSN 1981-4321

Tema: Mesa Redonda - Política

MODALIDADES DE RESISTÊNCIA POSSÍVEIS NO MUNDO CAPITALISTA

Autores:
São três os tópicos que enlaçam a proposta desta mesa: um diálogo teórico em torno da teoria crítica e da psicanálise; a pergunta sobre as possibilidades de resistência na sociedade capitalista contemporânea; e a aposta em saídas que são definidas como "políticas", entendendo-se política em um sentido mais amplo, para além da noção de política como meio institucionalizado de ação. Partimos do primeiro artigo, que examina as estratégias de poder e os impasses do sujeito contemporâneo nestes tempos sombrios em que a felicidade segue o imperativo do gozo. Diante disso, aponta algumas das conseqüências para o sujeito no capitalismo avançado - particularmente as que incidem sobre o sentido da vida, a relativização da existência compartilhada e a fragilização da experiência que marca a historização do sujeito - e indica algumas modalidades de resistência, notadamente uma práxis caracterizada pelo resgate da experiência compartilhada do mundo, que permite o questionamento de verdades tidas como absolutas pela cultura, podendo gerar a mobilização de redes de relações de modo a reinventar o sexual, o social, o político, e até mesmo uma nova ordem social. O artigo seguinte propõe o papel do psicanalista como um crítico cultural, cabendo a ele sustentar o valor da palavra como ato enunciativo singular que atesta a consistência de uma experiência subjetiva. Partindo dessa posição ética do analista, o artigo propõe interrogar o esvaziamento da experiência na modernidade e sua relação com a profusão de informações e imagens em circulação. Trata-se de interrogar de que forma o analista pode aí cavar o espaço do silêncio necessário para a inscrição da experiência, como uma estratégia de resistência. Trata-se hoje de saber como fazer o Outro calar, reinstalando o silêncio para que o ato de fala possa recobrar seu pleno valor. A questão que se coloca, então, é como calar sem, com isso, tornar-se cúmplice? Como fazer ouvir esse silêncio, convertendo-o em um tempo-espaço para a inscrição da experiência? Por fim, apresentamos o último artigo, que discorre sobre o os novos movimentos de protesto contra a sociedade de consumo, denominados "movimentos de consumidores", que se dividem entre aqueles que ainda se inserem na forma tradicional de política - pela via da institucionalização do conflito -, bem como, outras formas de protesto que operam à margem da política tradicional, questionando os seus limites. Por outro lado, o artigo traz à tona questões que interrogam a possibilidade de emergência da "consciência crítica", à luz das proposições da teoria crítica de Theodor Adorno. Nesse ponto, abre-se o diálogo e o debate entre teoria crítica e psicanálise, a partir de questões comuns que cercam os três artigos: o consumo, a individualização, e as formas de subjetivação decorrentes do capitalismo tardio. Nesse sentido, visa-se demonstrar a dialética da palavra política, tanto no sentido de que ela indica relações de poder que atravessam todo o tecido social e que, portanto, forjam mentalidades; como também como ela indica brechas de resistência que também se apresentam fora do poder constituído, como o riso, o silêncio, a transgressão.
 
 

Resumo das Falas

ISLEIDE ARRUDA FONTENELLE(FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS)

RESISTÊNCIA, PODER E POLITIZAÇÃO DO CONSUMO: NOVOS DOMÍNIOS DO ESPAÇO PÚBLICO?

O objetivo deste artigo é o de refletir sobre o alcance do "consumo ético" na construção de uma nova cultura de consumo; bem como, de questionar até que ponto esse tipo específico de movimento de consumidores representaria uma forma nova de política no seu significado amplo, qual seja, no sentido de recolocar a questão do "espaço público" como uma esfera de crítica e de poder na determinação dos rumos da transformação social. Consumo ético, na proposição dos autores e organizadores do livro "The Ethical Consumer" (Harrison; Newholm; Shaw; 2005), se refere a um ato de compra (ou não compra) no qual estão implícitas as preocupações do processo de consumir com os impactos que isso possa causar ao ambiente econômico, social ou cultural. Ou seja, ele está circunscrito ao fato de que o consumidor pensa e se preocupa com os efeitos que uma escolha de compra gera aos outros e ao mundo externo como, por exemplo, com o tratamento despendido aos trabalhadores envolvidos na produção de um determinado produto, ou com os impactos ambientais que certos produtos causam. Esse tipo de atitude, que pode ser individual, só se tornaria política ao se condensar em um coletivo, denominado de movimento de consumidores ou "consumer activism", nas proposições de Lang; Gabriel (2005). Empreendendo uma breve história sobre o ativismo dos consumidores, os autores demonstram como esse termo não é novo, remontando ao século XIX, através de histórias de boicotes e de formação de cooperativas de compras, como as cooperativas inglesas emergentes no final do século XIX, formadas em reação aos preços excessivos e à má qualidade dos produtos. Os autores reconhecem que o ativismo dos consumidores tem sido pouco teorizado na literatura histórica e acadêmica, mas apontam para a importância que o movimento pelo consumo ético tem ganhado nesse início de século, na medida em que as questões contemporâneas que o movimento tem levantado envolvem problemas complexos como a sustentabilidade do planeta, o comércio justo, a solidariedade social, e os direitos do consumidor enquanto direitos de cidadania. Mas qual é o alcance e a efetividade desse tipo de movimento? Murphy; Bendell (2001) descrevem os consumidores como a nova força capaz de enfrentar as grandes corporações em face do declínio do poder e a da influência dos sindicatos trabalhistas; e que eles, de fato, estão causando impactos profundos nos projetos das grandes corporações. Segundo os sociólogos Beck (1999) e Giddens (1990), tendo em vista que muitos dos riscos que nós estamos enfrentando são decorrentes das nossas próprias ações humanas na construção das sociedades de consumo, tais ações passaram a ser questionadas e politizadas. Sob essa perspectiva, o "consumo ético" estaria provocando uma mudança na atual sociedade de consumo de massas e formatando uma nova "cultura de consumo". Mas até que ponto esse tipo de atitude pode ser considerada política no seu sentido amplo, qual seja, na determinação de uma transformação social que altere o jogo de forças no qual predomina, hoje, o mercado? Na literatura crítica internacional, há dois tipos de interpretação: a que acredita na importância do movimento em provocar mudanças radicais na sociedade contemporânea e, nesse sentido, promover a transformação social; e, em uma perspectiva oposta, uma interpretação que recusa ver o movimento como uma forma de ação política. Tais perspectivas serão desenvolvidas ao longo deste artigo. Por ora, pretende-se demonstrar que o debate em torno dessa questão aponta para as reflexões que este artigo apresenta acerca das relações entre consumo ético e espaço público, lançando mão, em primeiro lugar, da abordagem teórica sobre o processo de democratização na América Latina, consolidada ao longo dos anos 90, que redefiniu a noção de "espaço público" enquanto um "modelo discursivo". Essa concepção, que "diz respeito mais propriamente a um contexto de relações difuso no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes campos da vida social" (Avritzer; Costa, 2004), reforça a importância da sociedade civil como um eixo central das novas relações de poder. Mas é possível se assumir que tal concepção também deixa brechas para se pensar a emergência de novos atores que surgiram como produto de novas formas de vida e de comportamento, dentre os quais poder-se-ia localizar o movimento de consumidores? Para se enfrentar tal questionamento, é necessário retomarmos as bases da teoria crítica, acerca das relações entre sujeito e ação política. A temática do consumo sempre representou um objeto central de reflexão para a teoria crítica que, a partir dos escritos de Adorno; Horkheimer (1985), sob como as sociedades de consumo estariam gerando uma nova "cultura de massas", produziu um amplo arcabouço teórico-crítico que demonstrou o lugar do consumo na sociedade contemporânea e de como, a partir do marketing e de seus principais mecanismos de persuasão (propaganda e publicidade), começou a se dar uma infiltração da esfera comercial na esfera pública, mediante uma forma de comunicação cada vez mais guiada pelo mercado. Tal fenômeno seria ainda mais forte nas sociedades latino-americanas, caracterizadas pela inexistência histórica de um espaço comunicativo semelhante ao contexto europeu, possibilitando, dessa forma que os meios de comunicação de massa passassem a ser os mediadores sociais por excelência e estabelecessem "uma nova diagramação de espaços e intercâmbios urbanos" em tais sociedades (Canclini, 1990, p.49). Tal estado de coisas levou a uma interpretação central da teoria crítica, especialmente adorniana: a da perda da autonomia do espaço público e da atomização do indivíduo e sua transformação em consumidor de entretenimento. Sabe-se o quanto esse tema foi central, especialmente nas proposições de Adorno a respeito da "autonomia ilusória do sujeito burguês [e] do funcionamento opressor da razão científica e tecnológica, inclusive em sua aplicação ao campo social" (Dews, 1996, p.51), o que levou a uma certa paralisação da teoria crítica acerca da possibilidade da emancipação. Mas sabe-se, também, o quanto, para Adorno "as verdades mais profundas, e amiúde não reconhecidas, dos artefatos culturais revelam-se pelos seus aspectos aparentemente mais marginais e fortuitos" (Dews, 1996, p.51). Desnecessário, portanto, afirmar a importância de se pensar a emergência de um movimento de crítica no interior de uma cultura na qual o consumo passou a influenciar, decididamente a maneira como nós agimos, pensamos e vivemos ao longo da vida. O desafio deste artigo é, justamente, propor que é possível se pensar o movimento pelo consumo ético no horizonte da teoria crítica, a partir das duas temáticas elencadas acima, quais sejam: a do nível da representação política e o da consciência crítica. Trata-se de um desafio para o futuro, que este artigo não tem a menor pretensão de esgotar mas, tão somente, de apontar, na medida em que, para ser rigorosamente coerente com a teoria crítica, tal empreendimento só poderia ser plenamente realizado a partir da pesquisa empírica. Retomando Habermas, quando o autor forjou seu conceito de espaço público enquanto espaço discursivo, não deixou de levar em conta a ambivalência constitutiva da esfera pública, marcada como esta está pela imbricação entre a esfera pública e a privada, levada a cabo pelo mercado, especialmente, pelos meios de comunicação de massa. Daí porque, propôs que as associações voluntárias que operariam na esfera pública, se opondo aos atores instituídos, fossem desvinculadas do mercado e do Estado - e passassem a ser denominadas de "sociedade civil" - e alertou para que tais movimentos fossem avaliados individualmente e empiricamente, a fim de que se pudesse compreender o seu alcance de interferência nas instâncias decisórias. Será, portanto, mediante a realização da pesquisa empírica sobre movimento de consumo ético no Brasil, já em desenvolvimento, que se espera encontrar mais respostas para as questões que este ensaio teórico aponta. Mas espera-se que este artigo já contribua com o debate, na medida em que aponta algumas questões contemporâneas pertinentes às questões relativas às possibilidades da emergência do sujeito do conflito.

MIRIAM DEBIEUX ROSA (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO)

VIVER EM TEMPOS SOMBRIOS: DO GOZO AO RISO.

Neste trabalho vamos examinar, apoiados em autores de diversas áreas, as estratégias de poder e os impasses do sujeito contemporâneo nestes tempos sombrios em que a felicidade segue o imperativo do gozo, mortífero para o desejo, aproximando vida e morte, ou pior, mais da morte do que da vida. Apontaremos algumas das conseqüências para o sujeito no capitalismo avançado, particularmente as que incidem sobre o sentido da vida, a relativização da existência compartilhada e a fragilização da experiência que marca a historização do sujeito. Indicaremos algumas modalidades de resistência. Há estratégias e conseqüências do capitalismo avançado para o sujeito, particularmente afetado pelo atravessamento da lei do mercado na lei do desejo. Os discursos que daí decorrem incitam a um modo de laço que empurra o sujeito violentamente ao gozo, seja sob a forma de consumo e lucro, seja na de sofrimento. O discurso, em que a lógica do capital e lucro é apresentada como a única possível, é abordado por Lacan (1974) como o Discurso do Capitalismo, uma modalidade degradada do Discurso do Mestre que desestabiliza o laço social dominante na sociedade contemporânea. A estratégia de convencimento destes discursos toma forma científicista, apresentando-se com aparente objetividade e dispensando a apreciação do sujeito, igualmente produz ilusões e engodo, ao obturar o desejo pela certeza do eu. Propõem aos sujeitos uma realidade posta (imposta), que os abstém dos dilemas éticos, o que gera, para além do mal estar, violências. Apresentam-se como realidade indiscutível, equivalentes à própria verdade do sujeito e do seu objeto de gozo. Processa-se certa desestabilização do sujeito, promovida quando os discursos adquirem tonalidade totalitária ao potencializar e fazer coincidir o ideal do eu com o objeto de gozo dando a este uma suposta solidez estática que fascina e, aliada ao supereu, paralisa os processos criativos e desresponsabiliza o sujeito da apreciação própria e de seu compromisso. O traço fundamental do "totalitário" é justamente a perda da distância entre a fantasia que fornece os referenciais do gozo do sujeito e a lei formal-universal que regulamenta a troca social (Zizek,1991). A fantasia se "socializa" de maneira imediata, a lei social coincide com uma ordem e começa a funcionar como um imperativo superegóico. A astúcia do totalitarismo que aproxima lei e gozo, transforma uma fantasia na alegada realidade ou verdade última desvinculada da história da comunidade. Estende o seu manto sobre a realidade social, atendendo às premissas de um tipo de historiografia que obtura os antagonismos reais, procurando preencher todos os espaços e desmentir a negatividade do sujeito. Nesse sentido, como discurso capitalista, a fantasia intensifica a alienação do sujeito. Tal estratégia constrange a resposta do sujeito dividido que, desestabilizado nas suas insígnias, é convencido de que a sua verdade é ilusão, anacronismo e segue sem um projeto de futuro para si mesmo, sua comunidade; perde a direção de sua vida, adapta-se, debate-se para prosseguir. Isso homologa o sujeito que se sacrifica a fazer funcionar a estrutura social a custo do sofrimento, com o perigo de se colocar como instrumento do gozo do Outro- social. Gesta o germe da violência contemporânea que aparentemente desvinculada do discurso que a embala, comparece em outro lugar. Um segundo aspecto das artimanhas do poder é incidir sobre o sentido da vida. As sociedades contemporâneas redefiniram em nome da cultura o significado da vida e assinalam novas formas de poder que advém dessa operação uma vez que a vida e o humano não conceitos politicamente ingênuos. Duas formas do poder no contemporâneo investem sobre o sentido da vida: a discriminação entre o que é considerado civilizado ou monstruoso, ou seja, aquilo que é excluído de seu campo civilizador, e um modo particular de tratar o mundo natural que reduz a vida a sua modalidade orgânica e biológica. De modos diversos os autores convergem para demonstrar como o poder abala a potencia da experiência compartilhada que escreve a história do sujeito e da comunidade. Examinar este aspecto fundamental permite indicar o caminho para um laço que permita constituir uma vida própria com o outro. Visando um vocabulário conceitual para articular as influencias da globalização e as disposições pessoais, Guidens (2002) demonstra que facetas humanas que possibilitem criar um sentido para a vida, ficam excluídas da vida, reduzida a um cotidiano amorfo. Agamben (2004) questiona a atual substituição da experiência pelo conhecimento na contemporaneidade. Ao propor uma articulação da infância com a distância necessária para a experiência e o registro da história, deixa claro que as questões deste debate transcendem o campo ideológico e dizem respeito ao campo da ética e da política. O desafio do homem contemporâneo versa sobre como contrapor outras formas de expressão da vida para além desta que nos torna seres inteiramente privados: da presença dos outros e da realidade que advém de um mundo compartilhado. Retomar a vida como bios supõe o deslocamento do gozo monitorado politicamente e mortífero para o desejo, para uma práxis caracterizada pelo resgate da experiência compartilhada do mundo; supõe a presença dos laços de amor e amizade que fazem ruir alegremente a opressão do poder soberano A psicanálise demonstra o caráter constituinte e antecipatório da experiência. Assim, em vez de adaptação à realidade, do encontro pleno, sem embaraço ou pathos, a psicanálise enfatiza o encontro com o real pulsional, traumático, pois constata que o objeto do desejo não existe na realidade, que não há um sentido estabelecido para a vida. Só vazio. Não há como responder ao "che vuoi?" (o que o outro quer?). O sujeito ofuscado pela imagem de si estremece no encontro com o real pois se depara com a sua condição trágica. O lugar vazio no Outro não enuncia a lei. Cabe, pois, ao sujeito, enunciá-la e tomá-la como esteio que determina o lugar do gozo. Desse modo, o sujeito é responsável por seu inconsciente e pela Lei que nele se articula, uma borda que lhe serve de apoio. Freud trabalha algumas vias de resgate da dimensão do desejo. Demonstra que é no campo intersubjetivo conceituado como campo transferencial, que se produz o saber do sujeito: sujeito do desejo, engendrado pela cultura, mas que, em sua condição de dividido, pode transcender ao lugar em que é colocado e apontar na direção de seu desejo. Além desta condição primordial para a invenção de si mesmo, a sublimação com o seu vínculo com a arte e a criação é uma das vias mais destacadas. Salientaremos aqui o chiste como uma estratégia interessante na medida que envolve a relação social. O deslocamento do pathos do registro do drama para o do trágico convida para a experiência e o convívio com o trágico e a construção de instrumentos para o sujeito lidar com a tragicidade inerente à condição humana. A experiência compartilhada é um destes instrumentos, é ato de transgressão, de superação dos limites, de revelação da impostura. Tem poder, poder de denunciar e mesmo de contornar as identificações imaginárias presentes nas diversas formas de manifestação do ódio ao outro, dos racismos. Transformar a agressão mortífera em chiste e gozar com o riso que provoca propicia barrar a identificação com o agressor e esvaziar, em ato, na cena social, o aniquilamento presente no gesto racista, afirma Birman(2005). Restaura uma potencia irreverente e o desejo de transgressão presentes no sujeito. Revela o seu poder e permite o sujeito afirmar seu desejo e restaurar direitos. O humor é uma das formas criativas de reação ao discurso discriminatório, é um modo de não incorporar a crueldade e não prender em uma mortificação passiva. O processo coletivo nos livra do domínio da intimidade que não permite o cultivo de uma distância necessária para os laços comunitários. A reabilitação do espaço público permite que a amizade produza a construção de projetos comuns, de utopias. Nesta direção está a consideração da função da fratria (Kehl, 2000). A experiência com os limites amparada pelo grupo permite a diminuição da ameaça e da culpa que pode pairar sobre cada um, isoladamente, e a troca de impressões e reflexões sobre o vivido. A experiência compartilhada permite que se altere o campo simbólico, já que questionam verdades tidas como absolutas pela cultura, podendo, conforme a dimensão da crítica, gerar a desobediência civil coletiva e até mesmo uma nova ordem social pode ser fundada. Fica também registrado que intensificando e mobilizando nossas redes de relações pode-se tocar o desejo - vetor da cena lúdica e coletiva - de modo a reinventar o sexual, o social, o político. Tais redes sustentadas pelo desejo são orientadas por uma lógica própria que trata de reinventar a vida, criar mecanismos de pressão contra a submissão ao poder soberano, resgatar a experiência compartilhada com os amigos, com os contemporâneos.

MARIA CRISTINA POLI (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL)

O SILÊNCIO NECESSÁRIO: O ATO DE FALA NA PSICANÁLISE COMO ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA

"Um minuto de silêncio", prática ritualística que convoca uma dada comunidade ao compartilhar respeitoso de uma perda. Perda essa que é, então, situada como equivalente à ausência de palavras, ou de uma palavra que possa denominá-la. Escansão necessária, anterior à produção de algo que venha a suturar a experiência da falta ao nominá-la. O espaço e o tempo necessários para o trabalho psíquico do luto são paradigmáticos para pensarmos as condições da experiência hoje. O termo "experiência" tal como recuperado por Agamben (2005) da tradição filosófica fenomenológica, não é simples de ser definido, dando-se a conhecer antes pelo que "não é". Assim, a experiência "não são" os eventos, mais ou menos banais, mais ou menos intensos, que nos acometem cotidianamente. Desses cuidaremos que não se percam, descrevendo-os minuciosamente em nossos diários ou blogs. Também não se trata de situar a experiência pelo caráter excepcional de um dado acontecimento. Uma viagem, por exemplo, pode ser um acontecimento desse tipo que não deixaremos de registrar para sempre em nossas máquinas digitais. Seria, então, "experiência" aquele tipo de insight que nos torna mais sábios pelo encontro inusitado de uma dada estratégia mental que ensina a não cometer amanhã os mesmos erros de ontem? Esse é o modelo almejado pelos cientistas que encontram as fórmulas para nos dar a conhecer o resultado de tais experimentações. Agamben insiste: nada disso faz "experiência". Isso porque o que a define não está na qualidade ou intensidade do acontecimento; ela se refere antes a posição daquele que está a ele sujeito. Essa posição, contudo, não é determinada pela disposição de seu agente; ela é antes decorrente de um certo desencontro, de um certo descompasso, de uma certa incompatibilidade lá onde, diríamos, as palavras demonstram sua insuficiência nomeante, as imagens sua impossível visibilidade, os corpos sua inapreensível materialidade (Didier-Weill, 1998). A experiência, que Agamben nos convida a nos aproximarmos por intermédio de Heidegger, é circunscrita ao campo da linguagem: "onde os nomes nos faltam, onde as palavras se partem em nossos lábios". Campo inescapável do humano cuja condição, escreve Agamben, está na in-fância (sem fala), tempo de uma "experiência muda"; tempo que na psicanálise situaríamos entre o "não-ainda" (da inter-dição auspiciosa) e o "só-depois" (da significação traumática). A pressa do mundo contemporâneo já foi indicada por Freud (1908) como um dos componentes modernos do mal-estar na cultura. Ela se denota na produção incessante de imagens, na virtualização da vida (Baudrillard, 1990). É importante que se diga, para os propósitos desse trabalho, que não se trata de conceber o virtual como um "mal". O que estamos querendo problematizar é a incidência da virtualidade naquela condição da experiência que Agamben denomina de "muda". É nesse ponto, nesse lócus no qual o sujeito da enunciação constitui sua cavila, que a sobreposição incessante de imagens se configura excludente da experiência. Diante da profusão ininterrupta de informações, o sujeito é expulso de seu lugar ao ter a sua própria fala incluída na série de comunicações. Retomemos o conceito de sujeito tal como proposto pela psicanálise, a partir de Lacan (1953), pela distinção inaugural em seu ensino entre fala plena e fala vazia. Essa diferença permite a psicanálise conferir um alto valor ao "ato de tomar a palavra". Valor referido justamente ao reconhecimento de uma hiância no discurso, um intervalo silencioso, que permite inscrever aí a singularidade de um ato de fala. É nesse lugar no qual ao Outro faltam palavras, onde o discurso demonstra sua insuficiência, ali onde as imagens e as informações emudecem, que o sujeito pode advir com uma palavra própria e verdadeira, uma fala plena. Na prática clínica, tal estratégia se estabelece como o fundamento da escuta. A fala endereçada à transferência - do sujeito em presença de um Outro (analista) - engendra o dispositivo que converte uma aparente comunicação, em veículo de uma verdade. Enquanto crítico cultural é também esse dispositivo que um psicanalista pode propor como estratégia de resistência. No lugar do filme-denúncia e dos eventos de mobilização coletiva, trata-se hoje de saber como fazer o Outro calar. Daí o valor de obras de artes como a de Christo que ao empacotar monumentos os dá a ver. É preciso, igualmente, reinstalar o silêncio para que o ato de fala possa recobrar seu pleno valor. A questão que se coloca, então, é como calar sem, com isso, tornar-se cúmplice? (Costa, 2007) Como fazer ouvir esse silêncio, convertendo-o em um tempo-espaço para a inscrição da experiência? Talvez seja preciso antes reconhecer que a perda da escansão é fruto de uma outra perda que as imagens e discursos insistem em recusar. Perda que os objetos-fetiches ofertados ao nosso consumo se propõem a denegar. Para tentar entender que perda é essa que, recusada, retorna na forma de excesso (de objetos, imagens, discursos), façamos algumas considerações. Em um trabalho anterior, retomamos algumas considerações de Freud (1921) acerca da relação do líder com as massas que nos permitiram entender que tal função, de ordem política, é construída a partir da fetichização do personagem convocado a ocupar o lugar do pai morto. Trata-se, pois, nessa figura política - notadamente presente em regimes totalitários - de uma recusa coletiva ao luto do pai. Referimo-nos, evidentemente, ao pai enquanto ordenador dessa coletividade: aquele que pela sua posição e função diante da comunidade, detém as condições simbólicas e imaginárias de auferir valor aos atos e palavras, aos sistemas de troca e de circulação de valores. Freud expressa a encarnação dessas condições em um pai no mito da Horda primitiva. É esse mesmo pai que, amado e odiado por seus filhos, retorna na figura do líder, de forma ainda mais idealizada, pois traz junto a culpa coletiva pela sua morte. Como Freud nos indica, tal interpretação dos fenômenos coletivos não visa à constituição de uma psicopatologia social, mas viabiliza a leitura de uma condição estrutural e estruturante das formações grupais. Acrescentaríamos ainda, no entanto, para os propósitos desse trabalho, que se termos ai uma chave de leitura possível do luto recusado em nossa cultura, hoje é preciso dar um passo mais. Também para tentar entender porque o mito freudiano da horda primitiva não parece mais uma interpretação suficiente (se é que um dia foi) para restaurar o espaço-tempo do luto recusado. Com essa questão estamos buscando encontrar uma forma de que o analista possa, a partir do seu discurso e da sua posição, inscrever seu trabalho de crítico cultural criando as condições - tal como na operação clínica strito sensu - para sustentar transferencialmente na cultura o valor do silêncio. Nesse sentido, gostaríamos de retomar o trabalho de Rouanet (2006) sobre "Os traumas na modernidade". O autor situa ali os processos de desculturalização e secularização que marcaram a transição da cultura ocidental na entrada da modernidade. Como ele nos lembra, a partir da leitura freudiana sabemos que para que um trauma se constitua são necessários dois tempos: o tempo do acontecimento e aquele da significação traumática. Para Rouanet, quando Freud menciona às três feridas narcísicas da humanidade - a queda do geocentrismo engendrada por Copérnico, o questionamento radical do criacionismo pela teoria da evolução de Darwin e o descentramento do eu, da consciência e da racionalidade com a psicanálise - são os termos do segundo tempo do trauma que estão sendo mencionados pelo autor, responsável, portanto, por uma delas. Note-se que Freud assume aí uma autoria e uma responsabilidade. Ele inclui a psicanálise como produtora dos modos de subjetivação contemporâneos. Trata-se de uma posição de implicação necessária para a condução da transferência. Conforme Rouanet, a crise cultural contemporânea, sobretudo o retorno do fundamentalismo religioso e de formas místicas e científicas anteriores ao advento da psicanálise, podem ser interpretadas como incidências do recalque operado a partir desses traumas, indicados por Freud. Seguindo essa mesma via interpretativa, proporíamos que os excessos fetichistas - que anulam o valor da palavra ao obturar o silêncio necessário ao ato de fala - presentes em nosso laço social são também reações pós-traumáticas. Desses mesmos traumas propostos por Freud e retomados por Rouanet, mas que vistos por um outro ângulo, podem ser lidos - tal como o faz Foucault (1966) em "As palavras e as coisas" - como uma ruptura atinente às condições de representação no discurso. Diante da perda de um referente simbólico exterior que garantisse as condições de produção e compartilhamento da verdade - asseguradas na era clássica pelo primado da semelhança, conforme propõe Foucault -, a epistême moderna engendrou "o homem" enquanto sujeito e objeto do saber. Ora, é esse homem que a psicanálise (entre outros saberes e discursos) desencanta, introduzindo ai o sujeito do inconsciente. É a esse sujeito que, hoje, a eloqüência da mídia e das produções científicas quer fazer calar. Estamos, portanto, diante de um campo que nós psicanalistas conhecemos bastante bem. Cabe a pergunta se faremos como Freud e tomaremos a responsabilidade da transferência, reconhecendo nossa implicação nesse campo discursivo ou se continuaremos a produzir mais e mais discursos que se juntam às imagens, informações e objetos na recusa à instalação do silêncio necessário ao trabalho de um luto ainda inconcluso.

   
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