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Abrapso

ANAIS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO - RESUMO
ISSN 1981-4321

Tema: Poster - Saúde

REFLEXÕES SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO

Autor:
ARIANE PATRÍCIA EWALD, MICHELLE THIEME DE CARVALHO MOURA - UERJ ARIANE PATRÍCIA EWALD - UERJ
Podemos constatar que, especialmente a partir do século XX, o discurso sobre o sofrimento psíquico vem passando a impregnar cada vez mais a vida cotidiana, seja através de uma apropriação da linguagem "psi" pela mídia, seja pelo aumento do consumo de psicotrópicos ou pelo aumento da demanda pelos mais variados tipos de terapia. Deslizando no mundo do instantâneo, do virtual, do consumo e da compulsão, o homem contemporâneo vive a dificuldade de escolher de forma autêntica o seu modo de viver, sendo bombardeado por uma multiplicidade de novidades científicas que atendem a demanda de renovação permanente proposta pelo capitalismo de mercado. A relação de rótulos parece se torna a cada ano mais criativa: Distúrbio de explosão intermitente, Transtorno de deficiência motivacional, Transtorno desafiador opositivo, Síndrome das pernas inquietas... São tantas as possibilidades que o ato de se diagnosticar com algum transtorno passou a pertencer ao campo da banalidade e, paradoxalmente, ao da normalidade. Procurando compreender melhor esse contexto, este trabalho procura refletir o novo espaço de representação em torno da noção de saúde mental, bem como os vetores que sustentam a existência de um mercado contemporâneo do sofrimento psíquico. Procuramos analisar dois desdobramentos provenientes da tendência em se diminuir a fronteira entre o que é estabelecido como normal e patológico no comportamento humano: o primeiro deles seria a medicalização de eventos pertencentes ao cotidiano, fruto de um reforço do modelo racionalista, que surge dentro da lógica da modernidade na virada do século XVIII para o XIX. O segundo desdobramento seria em relação a um possível e crescente consumo de terapia Quanto ao primeiro, é evidente que para vender todo o arsenal farmacológico produzido, a indústria farmacêutica precisa promover o discurso de saúde mental na sociedade. Uma das estratégias utilizadas é a promoção de campanhas que redefinam o conceito de doença. Assim, trata-se de converter em problemas de saúde determinadas dificuldades relacionadas à vida cotidiana, transformar desejos em necessidades médicas, fazendo com que a subjetividade e o modo de viver do indivíduo fiquem regulados de acordo com o discurso médico. Podemos afirmar que a medicalização ganha força na medida em que cada vez mais transtornos são difundidos em proporções gigantescas, quase sempre com a ajuda de indústrias farmacêuticas e meios de comunicação de massa, que ao promoverem na mídia um "desvio de comportamento" específico, fabricam conseqüentemente consumidores em potencial. Nesse campo da medicalização, dificilmente se cogita a hipótese de uma reformulação social, pois a responsabilidade é quase sempre colocada como desvios individuais. Diante de tal contexto, deparamo-nos possivelmente com uma geração que cresce encorajada ao uso contínuo de drogas lícitas, relacionando-as à saúde e bem-estar e única via para a resolução de conflitos emocionais. Observamos assim a proliferação de um processo de vitimização do indivíduo que, diante de tantos meios feéricos de coerção, acaba acreditando que não é capaz de lidar sozinho com seus possíveis problemas, necessitando impreterivelmente recorrer às soluções mágicas que o medicamento pode proporcionar. Com a veiculação midiática do discurso "psi" agindo na produção de subjetividades, vemos surgir um processo de naturalização do vocabulário neurocientífico, fazendo com que termos como 'serotonina', 'antidepressivos', 'neurotransmissores', 'transtorno mental', sejam incorporados ao cotidiano das pessoas, influenciado, em muitos casos, o modo como experimentam a vida. O segundo desdobramento diz respeito a um possível e crescente consumo de terapia, isto é, ela pode ter se transformado em mais um produto de mercado, mais uma mercadoria que é vendida da mesma forma que um produto nas lojas de um shopping center. Seu valor passa ser atrelado a um status de experimentação: quanto mais, melhor. Seguindo a mesma lógica da diminuição da fronteira entre o normal e patológico, é possível perguntarmos se as terapias não estão seguindo o mesmo caminho já realizado pela medicina no século XIX, quando se iniciou o que conhecemos como "medicalização da sociedade". Poderíamos estar criando uma cultura da terapia? Principalmente a partir do século XX, vemos entrar em cena um movimento que propõe o esfacelamento do racionalismo e uma exacerbação das emoções, no qual o corpo se apresenta como um grande ícone de exploração dessa emocionalidade vivida "à flor da pele". Junto a essa valorização de emoções de todo o tipo, surge um forte sentimento de vulnerabilidade, do qual se origina a sensação generalizada de que a terapia é a condição quase que necessária para que uma pessoa consiga lidar de forma coerente com suas contingências. Um grande exemplo é o sucesso atual das terapias conhecidas como emocionais e corporais, onde se prega muito mais a liberação das emoções do que a reflexão sobre elas, além dos sucessos dos programas e de livros de auto-ajuda, como também misticismo e esoterismo de todo o gênero. Nesse processo, experiências humanas, perfeitamente normais e inevitáveis, tais como perdas, conflitos, ambivalências e ansiedade, passaram a ser consideradas quase patológicas, demandando tratamento psicoterápico. O sofrimento psíquico, acaba se tornando, também, mais uma modalidade de consumo para um mercado que se coloca promissor: muito stress, muita ansiedade, muito medo. Observamos que cada vez mais o homem contemporâneo precisa de instrumentos e técnicas para atualizar esse potencial emocional tão cultuado nos dias de hoje. Devido à presença forte de uma civilização técnica no cotidiano moderno, a sensibilidade acaba perdendo seu contexto natural e passa a ser instrumentalizada por uma enxurrada de bens de consumo: terapias de todo o tipo, religiões, programas de desenvolvimento pessoal, estados de transe, esportes radicais, raves, psicoestimulantes, simulações virtuais, etc. Podemos observar, dessa maneira, um crescimento cada vez maior de mercadorias, que se tornam perfeitamente adequadas à vulnerabilidade que esse culto aos altos e baixos da emoção traz. A psicoterapia é apenas um dos exemplos desse gigantesco mercado, mostrando que por se tratar de um método clínico, se não for apreendida com cautela e crítica, ela também corre o sério risco de "medicalizar" existências. Acreditamos que tanto a medicalização da vida quanto o movimento de consumo de terapia, refletem um aspecto do processo de vitimização do homem atual. Nesse processo, acabamos incorporando o papel de vítimas incapazes de manipular recursos internos para lidar com aspectos imprevisíveis de nossos modos de ser e estar-no-mundo. Diante disso, procurar uma solução externa para essa suposta vulnerabilidade, seja através da busca por terapias ou pela busca por "pílulas milagrosas", tem sido retratado pela sociedade como uma espécie de "passaporte" para se chegar ao patamar do cobiçado grupo dos "mentalmente saudáveis". É fundamental acreditarmos que colocando esse tema em discussão, estamos fazendo com que as engrenagens que contribuem para esse espectro de vitimização do homem comecem a apresentar as suas falhas, gerando assim os espaços necessários para pensarmos formas alternativas de ação e de resistência na sociedade atual.
 
 

   
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