Página Principal
Topo Topo
Abrapso

ANAIS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO - RESUMO
ISSN 1981-4321

Tema: Sessões Temáticas - Mídia, Comunicação e Linguagem

AS REPRESENTAÇÕES DO PRESO NO LIVRO "ESTAÇÃO CARANDIRU"

Autor:
MÁRCIA PEREIRA PEDROSO, PEDRINHO A. GUARESCHI - PUCRS
A Casa de Detenção de São Paulo - conhecida pelo nome do bairro onde se localizava, o Carandiru - era o maior conjunto prisional da América Latina. Fundado na década de cinqüenta, tinha o objetivo inicial de servir de local passagem para os presos à espera de julgamento. Sua capacidade oficial, originalmente, era para 3250 presos. Após uma reestruturação física, sua capacidade máxima elevou-se para 6300 presos. Desde 1975 a Casa de Detenção já não tinha mais sua função inicial, os detentos que lá se encontravam já não eram mais somente aqueles que aguardavam julgamento. A superlotação do local e a degradação da condição humana que ele proporcionava ocasionariam o seu fim. Em 02 de outubro de 1992 a Casa de Detenção abrigava cerca de 7.200 homens e sofreu o trágico episódio que ficaria conhecido mundialmente como o "Massacre do Carandiru": uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo no presídio, que acabou deixando, em um confronto entre ela e os detentos, 111 mortos e 100 feridos, conforme a contagem oficial do governo do Estado de São Paulo - entre estes, somente presos. Diante da inegável exposição da miséria humana e da impossibilidade de manutenção do controle da penitenciária, no dia 08 de dezembro de 1992, parte do Complexo do Carandiru, após ter sido progressivamente desativado, foi implodido. Em 1999, o médico Drauzio Varella lança o livro "Estação Carandiru" contando sua experiência de 12 anos como médico no trabalho de prevenção da AIDS na Casa de Detenção de São Paulo e narrando parte da história da instituição e de seus habitantes. O livro tornar-se-ia a principal e mais popular obra a tratar da Casa de Detenção na última década. Já vendeu mais de 330.000 exemplares e mantém uma venda mensal de 5000 mil exemplares. Ganhou prêmios de melhor reportagem e melhor livro, dando origem ainda, a "Carandiru: o filme" dirigido e livremente adaptado por Hector Babenco em 2003. A proposta deste trabalho é tentar problematizar as idéias que integram a obra de Drauzio Varella como prováveis ratificadoras do massacre e naturalizadoras do sistema prisional. Conjectura-se que a estrutura física da Casa de Detenção de São Paulo tenha se extinguido, mas que as fronteiras representativas erigidas entre os seus supostos habitantes e o resto do mundo, continuem de pé e que este livro contribua para isto. A queda das muralhas físicas do Complexo do Carandiru não implica, necessariamente, na queda das fronteiras imaginárias e esta é a questão que se quer trazer à tona. Para tanto, há uma tentativa de incursão no conteúdo do livro "Estação Carandiru", tomando-o como um dos elementos cruciais na história da Casa de Detenção de São Paulo, como propulsor de sua visibilidade e, ao mesmo tempo, difusor de ciladas ideológicas a respeito da prisão e de seus personagens. Para Thompson (2002, p.76) "... estudar ideologia é estudar as maneiras como o sentido [serve] para estabelecer e sustentar relações de dominação." Com esta concepção em mente, retomamos a questão que dá origem a este trabalho, a saber: onde a narrativa de Drauzio Varella torna-se um elemento edificador, ou mantenedor, de muralhas entre os habitantes da prisão e o resto do mundo e onde ela se torna ideológica e legitimadora do sistema prisional? Na tentativa de respondê-la, examinou-se a interação entre os sentidos produzidos pela narrativa de Drauzio Varella em seu livro "Estação Carandiru" ao construir sua representação dos presos, procurando nesta análise descobrir como as formas simbólicas utilizadas pelo autor poderiam erigir, ou reproduzir, relações de dominação, já que as formas simbólicas não são apenas representações, mas são os elementos que constituem as relações sociais como tais. A narrativa de Drauzio Varella, de fato, a partir da forma com que utiliza as formas simbólicas, eleva fronteiras entre os habitantes da prisão e o resto do mundo. Como primeiro elemento deste entendimento encontra-se a proposição do autor de não fazer julgamentos, o que além de não isentá-lo de fazê-los, sobrevaloriza seu discurso frente aos demais, dando a ele excessiva credibilidade e poder dissimulando, com esta proposição, os julgamentos intrínsecos à sua escrita. Como um segundo elemento de indício ideológico na narrativa de Drauzio Varella encontra-se a legitimação do sistema penitenciário, reafirmada por suas proposições de mudança e de otimização do sistema e pela sua escolha em não questionar esta lógica. Quando o autor não questiona a lógica prisional, ele automaticamente ratifica a falácia de que ela seja justa. Como terceiro elemento ideológico da narrativa, encontra-se a dissimulação, que se refere ao fato do autor relacionar, por exemplo, os animais aos presos, transferindo assim as conotações positivas e negativas dos primeiros para os segundos através do deslocamento e da metáfora. Além disto, a ligação dos crimes à índole dos sujeitos e o desligamento dessa realidade do entorno social, econômico e político que a conforma, faz com que uma situação histórica pareça natural e atemporal, encobrindo desigualdades e injustiças sociais envolvidas nos fatos em questão. Além de desumanizar o preso, deposita somente nele o arbítrio de seu destino. Não há como se fazer uma distinção exata entre as fronteiras simbólicas erigidas pelo livro "Estação Carandiru" e aquelas que, já disseminadas, foram apenas reproduzidas por seu autor. O poder de segregar, desumanizar, estigmatizar não foi inventado por Drauzio Varella, todavia, embora se entenda que em muitos momentos ele pudesse ter atentado para escolha dos valores que difunde em sua obra. Por fim, considera-se que os pontos trazidos à tona nesta apresentação são apenas alguns dos exemplos encontrados ao longo da escrita do livro "Estação Carandiru", que podem ilustrar a representação do autor a respeito dos presos e de como o uso das formas simbólicas que as constituem ganham poder através de estratégias de sobrevalorização do discurso, de naturalização do sistema prisional e de dissimulação da alteridade encontrada na prisão (THOMPSON, 2002). A narrativa dominante ao decidir os critérios de classificação do mundo, decide que fronteiras serão erguidas entre os objetos classificados. Fronteiras físicas não possuem poder se não emanam e não se coadunam às fronteiras simbólicas. As primeiras tornam-se escravas das segundas e voltar atrás destruindo um espaço físico é simples, mas por si só não assola as fronteiras simbólicas que lhe deram origem. Frente à complexidade do tema, este trabalho se propõe a uma das interpretações possíveis e fica à espera que outras possam questioná-lo, refutá-lo ou enriquecê-lo.
 
 

   
Voltar Imprimir
ABRAPSO
Produzido por FW2