Agente de Solução: uma leitura foucaultiana Lucas Silva Costa* Co-autora: Maria Stella Goulart* O objetivo do presente artigo é descrever a rotina do Agente de Solução1 de uma empresa de telecomunicação no Brasil à luz das contribuições de Foucault. O relato do sofrimento será descrito desde a chegada a empresa até o término do expediente, por mim, um ex-Agente de Solução. Na chegada à empresa, olho para a porta do prédio e observo uma câmera de vídeo que vê rostos, trejeitos das pessoas, suas atitudes, enfim, tudo e todos que pretendem, ou não, adentrar a empresa. Na portaria ficam dois funcionários, um faz a segurança do Call Center2 e o outro é o porteiro. A entrada no Call Center só é permitida após a passagem do crachá de identificação na catraca, que se mostra ao lado dos dois funcionários citados. Por determinação da empresa os horários de chegada e de saída devem ser respeitados, de modo que, se ocorrer, por exemplo, um atraso de um segundo, o extrato3 acusa queixa e muda de cor (fica vermelho). Se levantarmos a cabeça, alinhando-a com o horizonte, após passarmos pela catraca, veremos o Call Center. Tudo se vê. As paredes, da metade de cima para baixo, são de vidro transparente. A Visibilidade é Total. Todas as células se fazem presentes. Caminhamos agora pelas cores neutras das paredes e pela visibilidade imposta pelos vidros, até onde dá acesso ao Call Center propriamente dito, onde não entram identidades nem problemas, apenas, Agentes de Solução. Neste momento o funcionário deve ir o mais rápido possível de encontro a sua célula e ao seu computador. Já na sua respectiva célula, o Agente de Solução rememora o número do registro o qual mostra que ele é mais um em meio à massa, e pelo qual também é reconhecido pela empresa e pelos outros Agentes de Solução, através do site interno. Em meio à correria para ser reconhecido pelo sistema, olho para o teto do Call Center e vejo uma câmera de vídeo localizada no alto de uma das pilastras da sala. A câmera faz com que o Agente de Solução saiba que está sendo vigiado por um olho que vê, mas não é visto. Um olho que diz do poder de quem vigia que assume várias formas, e uma delas é o tamanho da câmera citada. Esta tem o objetivo de se fazer visível para todos os Agentes de Solução, independente do lugar onde se encontram no Call Center, o que presentifica um olho, um poder, que, aparentemente, tudo vê. O expediente se inicia com a pausa atualização, logo após o atendimento ao cliente começa. Durante as ligações o Agente tem que ouvir com alegria na voz toda e qualquer agressão verbal que venha a sofrer do cliente, pois, além da câmera, da visibilidade total, o coordenador pode estar gravando a ligação, portanto qualquer alteração na voz do Agente que for percebida pelo coordenador durante as monitorias surpresas, acarretará perda de pontos na planilha de avaliação. O modelo de disciplina/controle aqui lido me remete a pensar no Panóptico de Bentham, mais especificamente na leitura que Foucault faz desse modelo, em seu livro Vigiar e Punir, 2007. Na leitura de Foucault, o panóptico se aplica em instituições como a escola, a família, a empresa, enfim, todo e qualquer lugar onde se faça presente o poder disciplinar. No caso do Call Center aplica-se o modelo do panóptico, guardadas as determinadas proporções, o prisioneiro é o Agente de Solução, os coordenadores das células são os vigias, que vêem sem serem vistos, e o coordenador do Call Center delega o presídio. E é para aonde converge todo o olhar disciplinador, assim o é teoricamente, já que, todos se vigiam, portanto, todos são vigiados. Além dessa hierarquia, a disposição dos objetos no ambiente também proporciona a visibilidade total, onde teoricamente tudo é possível, desde que o possível não ultrapasse o limite do pensar. Segundo Bentham, citado por Foucault (2007), até o pensar é disciplinado, pois, quanto mais tempo o sujeito vigiar o próprio comportamento, maior será o controle sobre o seu pensar, até que seu pensamento esteja disciplinado, adestrado. Um ponto importante a se destacar no Call Center é como a disciplina se faz presente de uma forma tão natural que parece até não ser imposta pelos vidros transparentes, pelo clima frio do ar, pelas câmeras de vídeo (num total de dez, espalhadas por todo o prédio da empresa). Esta naturalidade é o ponto forte do poder disciplinar. A disciplina se mostra e é colocada em prática, por um possível olhar do superior ou até mesmo do Agente que trabalha ao lado, pois, a disciplina é introjetada, e se assim o é cada um se torna um vigia que olha e é olhado. A cobrança conferida ao Agente de Solução não é externa ao Agente, ela encontra-se intrínseca ao Agente. A disciplina que a empresa dita a seus funcionários hora alguma é verbalizada durante o atendimento, ela é sustentada, nutrida e desenvolvida pelo próprio Agente. "O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens. (FOUCAULT, 2007, p221). O olhar que vê, porém não é visto, é o disciplinador do Agente de Solução que como o prisioneiro do presídio de Bentham, se auto-vigia, se auto-pune, se auto-adestra. No entanto, o vigia, ou melhor, o coordenador de cada célula, de onde poderá vir um possível olhar, também não é de confiança, portanto, ele também é um prisioneiro. "No panopticon, cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. (FOUCAULT, 1999, p220). Ou seja, o vigia se confunde com o vigiado de tal forma a ser um só, dando à sua consciência o dever de punir, ou não, o corpo que ela pensa ter controle. Assim, com a transparência, com a visibilidade, com a luminosidade necessária à produtividade e lucro o Agente de Solução do Call Center, ou seja, o Homem moderno presente em organizações como a escola, a empresa, a família, se torna prisioneiro, não da escuridão dos calabouços, mas, da escuridão da sua própria sombra. Considerações Finais O Panóptico de Bentham, lido por Foucault em seu livro Vigiar e punir, transportou meu olhar para pensar o processo disciplinar, aplicado nas presentes organizações, mais especificamente a empresa, na modernidade. Contudo, o poder disciplinar empregado no Call Center, ou seja, o poder sustentado pelo olhar, não é perfeito. Pois, da mesma forma que o olhar disciplinador se faz presente no Call Center durante todo o expediente, a escuridão da sombra do Agente de Solução se presentifica, devido a grande luminosidade do ambiente. Ao mesmo tempo em que o modelo de disciplina através do olhar, da transparência e pela luminosidade busca a perfeição, ele é falho porque na escuridão da sombra do homem que a luminosidade e a transparência tentaram apagar é que se faz visível a acirrada luta pela produção e lucro nos tempos modernos, denunciada, muitas vezes, pelas fraudes, corrupções, etc. A sombra resultante da incidência da luz da perfeição lucrativa sobre o homem moderno, aqui lido como Agente de Solução, denuncia o predomínio da lógica capitalista em detrimento das identidades particulares, ou seja, das subjetividades. A necessidade moderna de se ter um Agente que solucione os possíveis entraves apresentados à produtividade lucrativa, viabiliza a tendência ao aniquilamento da subjetividade na modernidade. Entretanto, mesmo que na qualidade de sombra, as subjetividades se presentificam, apontando para uma rede intersubjetiva, na qual possíveis conexões e desconexões podem iluminar o jogo imperativo do poder moderno capitalista. Afinal, não existem sombras sem luzes. O Agente ao se desconectar da sua função de solucionar e assim se desconectar da lógica da empresa, pode se conectar a sua condição de sujeito que indo de encontro a outras subjetividades, pode denunciar o despotismo do modelo capitalista moderno de forma crítica e responsável. Questões referentes à subjetividade, à intersubjetividade, formação de rede, o jogo constituído de conexões e desconexões, me conduz ao pensamento deleuziano. Talvez, a proposta de Deleuze possa apresentar possíveis dizeres sobre as linhas de fuga do homem moderno à escuridão de sua sombra, que se diz transparente e iluminada no jogo capitalista do poder. Contudo, estas questões ficam para fomentar outras discussões em outros momentos. Referências FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 33. ed. Petrópolis: Vozes, (1987) 2007a. 288p. FOUCAULT, Michel; MACHADO, Roberto. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro Edições Graal, 1999b. p. 209 - 227. * Estudante do quinto período de Psicologia da PUC- MG. Primeiro semestre de 2007. * Doutora em Sociologia e política. Professora da PUC- MG. 1 Nome dado por uma empresa de telecomunicações a seus funcionários do setor de tele marketing. 2 Sala aonde os Agentes de Solução trabalham. 3 Planilha que consta os horários estipulados para o Agente de Solução. Subgrupos formados contendo de dezoito a vinte Agentes de Solução. |