Introdução Jean Piaget, em sua obra "O Julgamento Moral na Criança" (1977), dedicou-se a estudar no que, sob o ponto de vista da criança, consiste o respeito à regra. A partir da observação de jogos infantis, Piaget identificou dois tipos de obediência às normas. A primeira, presente em crianças de até 7-8 anos, é caracterizada pelo respeito unilateral e pela heteronomia, a qual conduz ao chamado realismo moral: as obrigações são fixadas por uma autoridade, e são consideradas intangíveis e imutáveis. Os atos são avaliados por suas conseqüências, não pelas intenções de seu autor (Piaget & Inhelder, 2003). A segunda se principia a partir dos 7 aos 12 anos e se desenvolve a partir dos progressos da cooperação social e do desenvolvimento cognitivo operatório, os quais permitem novas relações morais, fundamentadas no respeito mútuo, e que conduzem à autonomia moral. As regras passam a ser vistas como produtos do consenso e podem ser modificadas desde que haja acordo entre os pares. Também surge o sentimento de justiça, o qual passa a ser central, sobrelevando a obediência cega às regras (Piaget & Inhelder, 2003). Segundo Vinha (2003), para a construção da autonomia moral, é necessário que a criança esteja inserida em um ambiente onde haja respeito mútuo e minimização do autoritarismo do adulto, ressaltando, porém que o estabelecimento de limites e o exercício da autoridade são fundamentais para a formação da criança. O programa de TV Diante dessa perspectiva, o presente trabalho se propõe a tecer algumas reflexões sobre a construção da autonomia moral infantil a partir de pressupostos contidos no programa de televisão intitulado "Super Nanny", no qual uma educadora visita famílias que solicitam seu auxílio para disciplinar crianças com as quais os pais não sabem mais lidar. O referido programa, que estreou em abril de 2006, no SBT, vem alcançando bons índices de audiência e se tornou popular entre pais e pessoas interessadas em educação de crianças. Com o grande sucesso, até mesmo uma revista foi lançada em torno do programa, contendo as dicas da Super Nanny, regras e placas a serem utilizadas pelas famílias, seguindo as orientações contidas nos episódios. A dinâmica do programa consiste em visitas da pedagoga Cris Poli a determinados lares, sendo uma família apresentada por episódio. Primeiramente, é realizada uma visita de observação, na qual a educadora permanece por três dias observando, sem intervir, as relações familiares, focalizando principalmente as crianças. Em seguida, é realizada uma entrevista de devolução, na qual Poli relata aos pais o que observou do funcionamento da família. Com a adesão destes à sua intervenção, ela estabelece uma rotina para a casa, contendo cartazes com horários e tarefas para os pais, bem como regras a serem seguidas pelas crianças (como "não bater", "não chorar sem motivo", "guardar os brinquedos"), ilustradas por placas. Em seguida, há a explicação para os pais de alguns métodos, sendo o principal denominado "Cantinho da disciplina", o qual consiste em duas fases. Na primeira, ao se constatar a desobediência da criança a alguma das regras, realiza-se a "advertência", levando-se a criança a olhar para as placas. Na segunda, se a criança persistir no comportamento de transgressão, deve-se dizer novamente que ela quebrou a regra e que, por isso, irá ficar no "cantinho da disciplina", local da casa previamente determinado para isso, e no qual há uma acomodação (banco, degrau de escada, tapete) na qual a criança deve permanecer sentada por tantos minutos quanto forem a sua idade. Após isso, a pessoa que aplicou o método deve se aproximar da criança e perguntar-lhe se ela sabe por que está ali, se pensou no que fez, se está arrependida. Em seguida, solicita-se que peça desculpas e finaliza-se com um abraço ou beijo. Outro método estabelecido é o "Quadro do Incentivo", consistindo geralmente num quadro imantado, ilustrado com algum tema, contendo ímãs relacionados. Ao fim de cada semana, coloca-se um ímã no quadro se a criança cumpriu as regras; caso contrário, retira-se um ímã. Quando se completam todos os ímãs no quadro, a criança é premiada com alguma coisa que goste (um passeio, uma comida, um presente). Após uma semana de orientações aos pais em relação aos métodos, Poli deixa a casa. A família, então, é filmada por mais uma semana, sem a presença da educadora. Ela assiste ao filme produzido e retorna para corrigir possíveis falhas detectadas na aplicação dos métodos. Após mais algumas orientações, a Super Nanny deixa definitivamente a família. Há, ao final, depoimentos dos pais, outros familiares que residam na casa, de Poli e, às vezes, das próprias crianças. Na grande maioria dos episódios, a intervenção efetuada é aprovada e os pais relatam conseguir disciplinar seus filhos. Discussão Para Piaget (1977), no domínio da justiça retributiva, há dois tipos de sanção, cada qual relacionada a um tipo de regra. O primeiro tipo, por ele denominado sanções expiatórias, coaduna-se com regras de autoridade e com a coação. Se a regra, imposta ao indivíduo, é quebrada, há um castigo doloroso e arbitrário (sem qualquer relação com a ação que provocou a sanção, como castigos corporais, privações), mas proporcional à gravidade da falta. O segundo tipo é o das sanções por reciprocidade, relacionadas às regras de igualdade e à cooperação. A regra passa a ser admitida interiormente pela criança, que compreende a sua existência como necessária à formação de vínculos sociais recíprocos. No caso da violação da norma, as próprias conseqüências da ruptura do elo social são suficientes para impulsionar o indivíduo a desejar o seu restabelecimento, não se necessitando provocar sofrimento adicional. Assim, as sanções por reciprocidade guardam relação entre o ato e a sanção e fazem com que a criança compreenda o significado de seus atos (Piaget, 1977). Segundo Vinha (2003), o uso tanto de punições (sanções expiatórias) quanto de recompensas dificulta o desenvolvimento da autonomia, auxiliando a manutenção da heteronomia. A obediência motivada pelo medo da punição ou tendo em vista algum benefício futuro constitui-se numa ação heterônoma, ocasionando a dependência da criança em relação às regras de comportamento a serem obedecidas, desencorajando-a a construir o seu próprio discernimento a respeito do certo e do errado. As recompensas têm, ainda, como conseqüência, o estímulo à bajulação com vistas a alcançar aquilo que é desejado. Conclusão O programa Super Nanny apresenta pontos positivos, como restabelecer a confiança dos pais em sua autoridade e tranqüilizá-los quanto à possibilidade de serem atuantes na educação de seus filhos. Porém, à luz da teoria piagetiana sobre o desenvolvimento da autonomia moral, as estratégias apresentadas pelo programa para o estabelecimento de limites reforçam a heteronomia moral, perdendo a oportunidade de alertar os pais sobre seu papel no desenvolvimento de uma moral autônoma, no incentivo do discernimento entre o certo e o errado, e na formação da autodisciplina em suas crianças, atributos fundamentais para a construção da cidadania. Referências Bibliográficas Piaget, J. (1977). O Julgamento Moral na Criança. São Paulo: Mestre Jou. [Publicado originalmente em 1932]. Piaget, J. & Inhelder, B. (2003). A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: DIFEL. [Publicado originalmente em 1962]. Vinha, T. P. (2003). O Educador e a Moralidade Infantil: Uma Visão Construtivista. Campinas: Mercado de Letras/FAPESP. |